Apelação n.º 7679/08.3TBMTS.P1 (28.06.2011) – 3.ª
Teles de Menezes e Melo – n.º 1251
Des. Mário Fernandes
Des. Leonel Serôdio
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I.
B… intentou a presente acção sob a forma de processo sumário contra C…, SA pedindo que se declare resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre a autora e a Ré; a condenação desta a pagar à A. a quantia global de € 12.230,00 (correspondendo: € 9.990,00 à restituição do preço, € 1.040,00 ao armazenamento da viatura desde o mês de Outubro de 2007 até à data, à razão de € 80,00 mensais, e os meses subsequentes até à entrega da viatura, € 200,00, ao tempo do seguro da viatura e € 1.000,00 aos danos morais sofridos pela autora e sua família); e, a condenação da Ré no pagamento dos juros legais, à taxa anual de 4%, sobre € 11.230,00, vencidos desde o mês de Outubro de 2007 até à data, de € 490,00, bem como os vincendos até efectivo pagamento.
Alegou que a Ré levou a cabo, no mês de Setembro de 2007, no recinto do “…”, à …, na cidade do Porto, uma exposição/venda de carros usados que a autora visitou no dia 16. Nesse dia, o seu colaborador/vendedor D…, mostrou à A. o veículo automóvel marca Peugeot, modelo …, matrícula ..-BJ-.., não tendo esta nessa altura ficado com a percepção dos pormenores do carro. No dia seguinte foi a casa da A., a quem disse que ia vender um automóvel que depois de preparado nas oficinas da Ré estaria como novo. Assim se fez a reserva de venda, pelo preço de € 9.990,00, com o sinal de € 200,00, pago pela A.. Em 09.10.2007, à noite, D… apareceu para entregar o automóvel, o que fez com as respectivas chaves. Entregou também um certificado de matrícula, uma autorização de circulação e um termo de responsabilidade que a A. assinou. E recebeu o restante preço, pago por esta, no valor de € 9.790,00, de que não deu quitação. Era suposto a Ré ter entregue à A., como se obrigara, um automóvel em estado impecável, como novo; o registo na Conservatória do Registo Automóvel do veículo em nome da A. ou documento bastante para a promoção do registo; e documento de circulação emitido pela Conservatória do Registo Automóvel. Nada disto aconteceu e, nestas condições, a A. não quer a manutenção do contrato. O automóvel, quando vistoriado no dia seguinte e à luz solar, exibia borrachas vedantes das portas rasgadas; a escova do pára-brisas rasgada; riscos; o encaixe do cinto do condutor partido e colado com fita cola; a luz de presença, no interior nunca funciona; em andamento faz barulho; os pneus da frente estão “carecas”; e, não existe livro de manutenção. De tudo a A. reclamou à Ré, através da pessoa de D…, que nada fez. Entretanto, o automóvel continuou em nome de outrem e a A. não tem documento que a habilite a circular. A A. aderiu ao seguro automóvel proposto por D…, o qual não serve para nada, pelo que fez cancelar a apólice, com o inerente prejuízo, de € 200,00. A A., nas condições em que está o automóvel, desinteressou-se dele. Está o veículo guardado na sua garagem à ordem da Ré, que terá de pagar a armazenagem à razão de € 80,00 por mês. A situação vem causando à A. incómodos, despesas e desgostos.
A Ré contestou, alegando a caducidade do direito da A. propor acção de anulação da venda e alegando que esta teria de formular pedido de eliminação dos defeitos que invoca ou de substituição do veículo, para o que também já operou a caducidade do respectivo direito de acção. Invocou a ineptidão da petição, decorrente do facto de a A., face aos invocados defeitos e vícios do veículo, não poder formular pedido de resolução. De facto, a autora teria direito à eliminação dos defeitos ou à substituição, caso a reparação não fosse possível. Verifica-se assim uma contradição entre a causa de pedir e o pedido, o qual, além do mais, carece de suporte legal, tendo em conta o regime jurídico do contrato de compra e venda. Impugnou a factualidade alegada pela A., dizendo que ela examinou o veículo exposto à luz do sol e recebeu as informações que solicitou, decidindo-se pela sua aquisição. O veículo antes de ser entregue à A. foi objecto de trabalhos de pintura e polimento nas oficinas da "C1…, SA". A Ré procedeu à revisão do estado dos travões, direcção, luzes, óleos, pneus, limpeza do interior, etc, sendo falso que na data da entrega tivesse os defeitos enumerados pela A.. Após a reclamação verbal da A., o vendedor da Ré aceitou que o auto rádio não se encontrava em bom funcionamento e afirmou-lhe que o mesmo seria trocado. Contudo, face à posição da A., que poucos dias após a entrega do veículo já queria “desfazer” o contrato, o diálogo tornou-se impossível. O veículo era um semi-novo ou chamado “veículo de serviço”. Estes veículos mantêm-se na posse do concessionário por determinado período de tempo, mas averbados em nome da importadora. O veículo encontrava-se registado a favor da "E…", importadora para Portugal dos veículos da marca Peugeot. Após a conclusão do contrato com a A., a Ré comunicou à "E…" a venda do veículo para efeitos de ser promovido o registo a favor da cliente. Logo que recebeu o DUA com a propriedade averbada a favor da A. remeteu-lho pelo correio. O facto de a autorização de circulação ter uma validade de 30 dias é ultrapassado com a emissão de nova declaração, pelo vendedor.
A A. respondeu, dizendo não ocorrer ineptidão da petição nem caducidade do direito que pretende exercer através da acção.
Foi elaborado despacho saneador, dispensando-se a selecção da matéria de facto assente e a organização da base instrutória, com fundamento na simplicidade da causa.
Procedeu-se ao julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a Ré do pedido.
II.
Recorreu a A., concluindo:
1. Foi dado por provado e considerado, na sentença, pela Exa. Senhora Juíza do Tribunal “a quo”, essencialmente o seguinte:
a) A recorrente comprou, à recorrida, o automóvel identificado nos autos;
b) Nas circunstâncias ali descritas;
c) A recorrente pagou, à recorrida, a quantia de € 9.990,00, correspondente ao preço do referido automóvel;
d) A recorrida não entregou, à recorrente, nem a factura, nem o recibo do preço que recebera;
e) A recorrida devia ter entregue, à recorrente, um automóvel em bom estado, pelo menos impecável, que o Tribunal, não se sabe porquê, se recusou a considerar como novo, até pelo preço que custou;
f) O automóvel que a recorrida vendeu, à recorrente, não estava na sua propriedade;
g) O automóvel entregue à recorrente, pela recorrida, apresentava muitas mazelas e defeitos, sumariamente enumerados nos autos;
h) A recorrida não promoveu, em tempo útil, o registo do veículo no nome da recorrente;
i) Nem a recorrida entregou à recorrente, ao menos, documento bastante para que esta o pudesse registar;
j) O documento de circulação do automóvel tinha, apenas, a validade de 30 dias;
k) A recorrida nunca se preocupou em revalidar ou emitir outro ou outros documentos de circulação do automóvel;
l) A recorrida nunca esteve disponível para aquele nem para outros efeitos, por isso, o documento de circulação caducou;
m) Por isso, a recorrente, mesmo que quisesse, não podia transitar, com o veículo, na via pública;
n) A recorrente reclamou, várias vezes, junto da recorrida, a quem fez sentir aquele estado de coisas, e quanto a perturbavam e prejudicavam;
o) A recorrente esperava uma solução, por parte da recorrida, e, como não chegava solução alguma, indicou-lhe a sua;
p) A recorrente reclamou logo para o vendedor e representante da recorrida, D…, pedindo-lhe, encarecidamente, tratasse os problemas postos da melhor maneira que conseguisse;
q) Mas em vão, pois o Sr. D… nada fez, nem nada promoveu, limitando-se a não mais atender aos muitos telefonemas que a recorrente lhe dirigiu;
r) Este Senhor, arrolado pela recorrida, como testemunha, nunca apareceu nas audiências, apesar do Tribunal ter mostrado muito empenho na sua audição;
s) A recorrente reclamou, para a recorrida, para a sua sede, pelo telefone, mas em vão, pois ninguém propôs solução alguma;
t) A recorrente reclamou, para a recorrida, por escrito, através do seu mandatário, mas em vão, pois não obteve resposta, fosse em que sentido fosse;
u) A recorrente reclamou, para a recorrida, agora através de uma notificação judicial avulsa, mas em vão, pois continuou quieta e calada;
v) Nem assim, a recorrida se prontificou a solucionar os problemas da recorrente, não lhe propondo uma, sequer, das várias alternativas possíveis.
2. O mínimo que se exigia da recorrida, um grupo económico, era que tivesse, na melhor conta, o que lhe havia sido dirigido e que, sobre isso, tomasse clara e definitiva posição.
3. Que apresentasse, à recorrente, alternativas que ela aceitasse, como a reparação dos defeitos e a entrega dos documentos em falta, ou a troca do veículo por outro, ou a redução do preço ou a anulação do contracto.
4. Ou se aceitava, ou não, a resolução do contracto, o que a recorrente considera que aceitou, ao não ter dado resposta à pretensão que, nesse sentido, lhe fora dirigida por várias vezes.
5. Direito de resolução que confere à recorrente, por incumprimento da recorrida, sujeito ao regime comum. (Artigo 801 do Código Civil; Pedro
Romano Martinez Da Cessação do Contracto, Almedina, 2005, páginas 251 e ss, especialmente páginas 264 e 265).
6. Teria sido outra, a decisão, se a Exma. Senhora Juíza considerasse, como devia, que a recorrida nada quis reparar nem resolver, pois tem todos os elementos nos autos para chegar a esta conclusão.
7. O comportamento da recorrida foi, a todos os títulos, reprovável, ao ignorar e devotar ao total desprezo a recorrente, que tem todos os motivos para perder, nela, a confiança comercial, até se tendo desinteressado do objecto do negócio.
8. O modo de perspectivar os factos e o direito aplicável, pela Exma. Senhora Juíza, beneficiou, indiscutivelmente, a recorrida, a quem bastou estar quieta e calada, para que o tempo e o Tribunal estivessem do seu lado.
9. O que mantém inconformada a recorrente, por o Tribunal não ter feito a justiça que lhe pediu e que merecia, num processo judicial para si de enorme importância, por causa de um inquinado negócio de automóveis.
10. No entender da recorrente, a sentença em recurso violou os preceitos legais, de natureza substantiva, aplicáveis ao caso dos autos.
Termos em que deve ser anulada a douta sentença dada pelo Tribunal “a quo”, substituindo-a por outra que condene a recorrida a indemnizar a recorrente, conforme pedido na acção.
Farão Vossas Excelências, assim, boa JUSTIÇA.
A Ré contra-alegou, pedindo a confirmação da sentença.
III.
Questões:
- a apelada aceitou a resolução do contrato ao não responder à pretensão nesse sentido feita pela apelante;
- a lei confere à apelante o direito à resolução, por incumprimento (art. 801.º do CC);
- a apelante desinteressou-se do objecto do negócio.
IV.
Factos provados:
1. A ré levou a cabo, em vários dias do mês de Setembro de 2007, no recinto do “…”, à …, na cidade do Porto, uma exposição/venda de carros usados.
2. A autora visitou a exposição, com membros da sua família, no dia
16.09.2007.
3. Nesse dia, o colaborador/vendedor da ré, D…, mostrou à autora o veículo automóvel marca Peugeot, modelo …, com a matrícula ..-BJ-...
4. No dia 17.09.2007, o mesmo vendedor da ré foi a casa da autora, a quem referiu que o veículo iria ser preparado nas oficinas da ré.
5. Assim se fez a reserva de fornecimento do veículo, pelo preço de € 9.990,00, com o sinal de € 200,00, pago logo pela autora.
6. Em 09.10.2007, à noite, o vendedor D… aparece em casa da autora, com pressa, agora para entregar o automóvel, o que fez com as respectivas chaves.
7. Na altura referida em 6., também entregou à autora um certificado de matrícula, uma autorização de circulação e um termo de responsabilidade que esta assinou.
8. Na altura referida em 6. o vendedor D… recebeu o restante preço, pago pela autora, através de cheque, do valor de € 9.790,00, de que não deu quitação.
9. A ré não enviou à autora a factura e o recibo.
10. Na altura referida em 6., a ré não entregou à autora: o registo do veículo na Conservatória do Registo Automóvel em nome da autora ou documento para a promoção do registo, nem documento de circulação emitido pela Conservatória do Registo Automóvel.
11. Quando vistoriado no dia 10.10.2007 à luz solar, o veículo exibia: as borrachas vedantes de ambas as portas rasgadas; a pintura do espelho retrovisor, do lado do condutor, riscado; as tampas das rodas riscadas; um risco na pintura na parte da frente, do lado do condutor; o equipamento de som não correspondia ao que é de série neste modelo; a porta do lado direito do passageiro tinha um risco vertical na pintura; o encaixe do cinto do condutor estava envolvido em fita-cola preta; a luz de presença, no interior do automóvel, não funcionava; em andamento o automóvel fazia barulho (chiadeira), na traseira do lado direito; e, os pneus da frente do automóvel estavam “carecas”.
12. Nas condições descritas em 10. e 11. a Autora não quer o veículo.
13. A Autora reclamou da situação descrita em 10. e 11 à ré, através da pessoa do vendedor D…, o qual nada fez ou promoveu, não mais atendendo os telefonemas que aquela lhe dirigiu.
14. Entretanto, o automóvel continuou em nome de outrem que não da autora e a autorização de circulação tinha um período de validade de 30 dias, tendo terminado em 10.11.2007.
15. A Autora desinteressou-se do automóvel.
16. O veículo está guardado na garagem da autora.
17. O custo de um lugar de aparcamento, no local onde reside a autora, ascende a cerca de € 80,00 por mês.
18. A autora, através do seu mandatário, dirigiu à ré a carta junta a fls. 27 a 29, com data de 21.11.2007, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
19. A autora endereçou à ré uma notificação judicial avulsa, com entrada e distribuição em 10.01.2008, no Tribunal Judicial de Vila Real, sob o processo nº 84/08.3TBVRL, junta aos autos a fls. 30 a 48, cujo teor aqui se dá por reproduzido, da qual a ré foi notificada em 25.02.2008.
20. Por carta de 22.02.2008, recebida em 28.02.2008, a autora recebeu da ré o certificado de matrícula do veículo.
21. A autora devolveu o documento referido em 20. à ré, mediante carta de 29.02.2008.
22. A situação vem causando à autora incómodos, despesas e desgosto.
23. A autora propôs a presente acção em 10.11.2008.
24. Na ocasião referida em 3. a autora recebeu as informações que solicitou e examinou pelo menos o exterior do veículo, mostrando interesse na sua aquisição.
25. O vendedor da ré, na ocasião referida em 4., dirigiu-se à residência da autora porque tal encontro assim ficou combinado.
26. Entre 17.09.2007 e 09.10.2007, o veículo foi objecto de operações de revisão e limpeza que a ré sempre faz antes da entrega.
27. O veículo foi objecto de trabalhos de pintura no guarda-lamas traseiro direito, na porta da frente esquerda e nos pára choques (trás e frente); e, de polimento no capot, guarda lamas frente esquerdo, guarda lamas de trás esquerdo, porta da frente direita, porta da mala, tejadilho, embaladeira direita e esquerda e grossura interior.
28. Os trabalhos foram efectuados nas oficinas da sociedade "C1…, SA", sita no Marco de Canaveses.
29. O veículo encontrava-se registado a favor da "E…, S.A.", importadora para Portugal dos veículos da marca Peugeot.
30. O veículo era um “veículo de serviço”.
31. Após ter fornecido o veículo à autora, a ré comunicou à "E…, S.A." a venda do veículo para efeitos de ser promovido o registo a favor da autora.
32. Após receber o DUA com a propriedade averbada a favor da autora, a ré remeteu-lho pelo correio.
33. O facto de a autorização de circulação ter uma validade de 30 dias é ultrapassado com a emissão de nova declaração, pelo vendedor.
V.
Na sentença afastou-se a aplicabilidade do regime geral da venda de coisas defeituosas, previsto no art. 913.º e ss. do CC, quer por a A. não ter alegado erro seu ou dolo do vendedor, quer pela hierarquização de direitos estabelecida na lei, que relega a resolução do contrato para o último lugar, depois da eliminação dos defeitos, da substituição da coisa e da redução do preço.
Quanto ao regime estabelecido para a venda de bens de consumo na legislação especial, apesar de teoricamente se considerar aplicável, por o DL 67/2003 facultar ao comprador o exercício de qualquer um dos direitos, considerou-se não operar em concreto, por a resolução implicar abuso do direito.
A alusão ao abuso de direito remete-nos para o disposto no art. 334 do CC, nos termos do qual "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelo bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito."
Aqui chegados, cumpre analisar se, no caso concreto, assistirá à autora o direito de requerer a resolução do contrato.
Começando pela questão atinente aos documentos, resultou provado que a ré não fez acompanhar a entrega do veículo do registo do mesmo na Conservatória do Registo Automóvel em nome da autora, ou de documento para a promoção desse registo; nem de documento de circulação emitido por aquela Conservatória.
No entanto, a ré entregou à autora um certificado de matrícula, do qual resulta que o mesmo se encontrava registado a favor da "E…, S.A.", importadora para Portugal dos veículos da marca Peugeot. Tal facto justifica-se, porquanto o veículo vendido à autora era uma “viatura de serviço”. Após a sua venda à autora, a ré comunicou à "E…, S.A." a venda do veículo para efeitos de ser promovido o registo a favor da autora. Após receber o DUA com a propriedade averbada a favor desta última, a ré remeteu-o pelo correio à autora que o recepcionou em 28.02.2008. Não obstante, a autora procedeu à sua devolução.
Entregou também a autora à ré uma autorização de circulação, a qual tinha um prazo de validade de 30 dias. Decorrido esse prazo podia ser emitida nova declaração, pelo vendedor.
O procedimento da ré, no que à promoção do registo do veículo em nome da autora concerne, constitui um procedimento normal, face às regras da experiência comum, não se vislumbrando que a falta desse registo no momento da entrega do veículo, ou de documento que permitisse à autora diligenciar ela própria pelo registo, consubstancie uma desconformidade, nada indiciando nos autos que a demora verificada no averbamento do veículo em nome da autora se tenha ficado a dever à inércia da ré.
Quanto à autorização de circulação entregue pela ré, a mesma é suficiente para permitir à autora circular com o veículo na via pública, não sendo necessária a emissão de autorização por parte da Conservatória.
Quanto ao facto de ter sido ultrapassado o seu prazo de validade sem que tenha sido remetida pela ré à autora nova autorização, consideramos existir uma total desadequação e desproporção entre essa omissão da ré e o pedido de resolução do contrato com base nessa circunstância, porquanto, estando em causa um acto tão simples como a emissão de uma declaração, a autora não solicitou à ré essa emissão, dando-lhe a oportunidade de o fazer.
Mais resultou provado que o veículo exibia: as borrachas vedantes de ambas as portas rasgadas; a pintura do espelho retrovisor, do lado do condutor, riscado; as tampas das rodas riscadas; um risco na pintura na parte da frente, do lado do condutor; o equipamento de som não correspondia ao que é de série neste modelo; a porta do lado direito do passageiro tinha um risco vertical na pintura; o encaixe do cinto do condutor estava envolvido em fita cola preta; a luz de presença, no interior do automóvel, não funcionava; em andamento o automóvel fazia barulho (chiadeira), na traseira do lado direito; e, os pneus da frente do automóvel estavam “carecas”.
Devidamente ponderadas tais desconformidades, estamos em crer que as mesmas assumem pouco significado, sobretudo se tivermos presente que estamos perante um veículo usado, sendo que a situação poderia ser facilmente ultrapassada com reparações e substituições de pequena monta. Em tais circunstâncias, entendemos que a autora deveria ter dado à ré a possibilidade de reparar o veículo, requerendo a resolução do contrato apenas se a ré se recusasse a fazê-lo ou se o fizesse de forma deficiente. De facto, face a tais desconformidades, o imediato exercício do direito à resolução do contrato afigura-se-nos uma medida excessivamente gravosa e desproporcionada, configurando um verdadeiro abuso de direito, porquanto ultrapassa os limites impostos pela boa-fé.
Face ao exposto, também à luz do regime estabelecido pelo DL 67/2003 improcede a pretensão da autora.
O regime da venda de coisas defeituosas é tratado pelo CC com base numa diferenciação dogmática: sendo a venda realizada com a imediata transmissão da propriedade da coisa para o comprador, e ela é já defeituosa ao tempo da celebração do contrato, estaremos perante uma situação de erro do comprador, que permite a anulação do contrato por erro nos termos gerais (art.s 913.º e 905.º); se o defeito ocorre depois da celebração do contrato e a coisa é entregue nessas condições estaremos perante uma situação de cumprimento defeituoso, se o defeito for imputável ao vendedor (art. 918.º), ou de risco, em princípio a cargo do comprador (art. 796.º)[1].
Já se vê que esta dualidade de regimes é perniciosa. Assim, se o comprador escolher numa ourivesaria um anel de brilhantes e depois descobrir nele um risco, tem de demonstrar um erro seu para anular o negócio e apenas tem direito à restituição do preço e a uma indemnização pelos danos do interesse contratual negativo (art.s 915.º e 909.º); se encomendar um anel de brilhantes à ourivesaria e o vendedor entregar um anel riscado, considera-se haver incumprimento do vendedor (art. 918.º) e a indemnização abrange o interesse contratual positivo[2].
A tendência dos ordenamentos jurídicos é de proceder a uma unificação dos dois regimes, entendendo que em ambos os caos se deve considerar haver incumprimento da obrigação de entrega, por o vendedor ter sempre a obrigação de a entregar em conformidade com o contrato, considerando-se existir incumprimento sempre que se verificar alguma falta de conformidade. Esta simplificação já ocorreu no DL 67/2003, de 08.04, alterado pelo DL 84/2008, de 21.05, que transpôs a Directiva 1999/44/CE, embora deixando inalterado o regime geral do CC[3].
Relativamente à venda de coisas específicas, o art. 913.º/1 do CC inclui quatro tipos de situações:
a) vícios que desvalorizem a coisa;
b) vícios que impeçam a realização do fim a que é destinada;
c) falta de qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) falta de qualidades necessárias à realização daquele fim[4].
O regime da venda de coisas defeituosas é aplicável quando existam dois pressupostos: a ocorrência de um defeito; e a existência de determinadas repercussões dele no âmbito do programa contratual.
No primeiro, a lei inclui quer os vícios da coisa, quer a falta de qualidades asseguradas ou necessárias; em relação ao segundo, para que os defeitos possam desencadear o regime, é necessário que se repercutam no programa contratual deste modo: desvalorizando a coisa; fazendo com que não corresponda ao que foi assegurado pelo vendedor; tornando-a inapta para o fim a que é destinada[5].
De acordo com o art. 913.º, in fine, é aplicável o regime da venda de bens onerados, em tudo o que não for modificado pelas disposições do regime próprio da venda de coisas defeituosas. Assim, aplica-se a anulação do contrato por erro ou dolo ou a redução do preço, bem como se pode exigir ao vendedor a responsabilidade civil pelos danos causados. A obrigação de expurgação dos ónus ou encargos é substituída pela correspondente obrigação de reparação ou substituição da coisa[6].
Para a anulação do contrato por erro ou dolo, exige-se, na primeira hipótese, a essencialidade e a cognoscibilidade da essencialidade do erro para o declaratário (art.s 251.º e 247.º); na segunda, basta que o dolo tenha sido determinante da vontade do declarante (art. 254.º/1), salvo se provier de terceiro, caso em que se exige, também, que o destinatário conhecesse ou devesse conhecer a situação (art. 254.º/2).
No âmbito da venda de coisas defeituosas, a obrigação de sanação da anulabilidade que existe na venda de bens onerados, é substituída pela reparação ou substituição da coisa, caso seja necessária, e ela tenha natureza fungível (art. 914.º). O fundamento é a garantia edilícia prestada pelo vendedor, que garante tacitamente a inexistência de defeitos no bem vendido, tendo de o reparar ou substituir, salvo se o comprador conhecia o vício ou a falta de qualidades da coisa.
Deste artigo resulta a precedência da reparação sobre a substituição, a qual é apenas aplicável se for necessário e a coisa tiver natureza fungível.
A solução da última parte do art. 914.º significa que o regime da garantia edilícia não assenta na responsabilidade objectiva do vendedor, mas apenas numa presunção de culpa que pode ser ilidida mediante a demonstração de que o vendedor desconhecia sem culpa os defeitos da coisa. Mas esta ocorrência não impede o comprador de pedir a anulação do contrato por erro ou dolo, verificados os respectivos pressupostos[7].
A actio quanti minoris (art. 911.º/1) constitui uma alternativa à anulação do contrato em consequência do erro ou dolo, estabelecida no art. 905.º, alternativa imposta ao comprador sempre que se possa comprovar que os vícios ou falta de qualidades de que a coisa sofre não influiriam na sua decisão de adquirir o bem, mas apenas no preço que estaria disposto da despender por ele[8].
O regime civil tradicional nesta matéria tem vindo a perder terreno no âmbito das relações de consumo.
Assim, o art. 4.º do DL 67/2003, de 08.04 reconhece ao consumidor o direito à qualidade dos bens ou serviços destinados ao consumo, que é objecto de uma garantia contratual injuntivamente imposta, ao dizer-se no art. 16.º que “os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor”[9].
O art. 4.º do DL 67/2003, de 08.04, alterado pelo DL 84/2008, de 21.05, admite estes direitos do consumidor perante a falta de conformidade do bem adquirido: a) reparação; b) substituição; c) redução do preço; d) resolução do contrato.
Apesar da Directiva 1999/44/CE escalonar estes direitos, distinguindo dois níveis de reacção do consumidor: um 1.º que engloba a reparação ou substituição da coisa, e um 2.º para a redução do preço ou a resolução do contrato, o regime do art. 4.º/5 do DL 67/2003 não faz qualquer hierarquização, concedendo ao consumidor que exerça qualquer dos quatro direitos, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais[10].
A impossibilidade corresponde à inviabilidade da solução para efeitos de reposição da conformidade com o contrato. A impossibilidade da reparação ocorre sempre que o bem se tenha tornado inaproveitável para o consumidor, mesmo depois da intervenção do vendedor; a impossibilidade da substituição não decorre automaticamente da natureza infungível do bem, ainda que esta na maioria dos casos possa originar a impossibilidade de substituição, mas da natureza específica de certos bens que torna impossível a substituição, como acontecerá com a maioria dos bens em segunda mão, ou relativamente aos construídos com materiais fornecidos pelo consumidor.
Quanto ao abuso do direito, o legislador considerou suficiente para a transposição do conceito de desproporcionalidade constante da Directiva, a remissão para o art. 334.º do CC, quando naquela o conceito é mais preciso, assentando numa ponderação dos custos para ambas as partes[11].
No entanto, dado que o legislador português não transpôs a solução da Directiva que veda ao consumidor optar pela rescisão do contrato quando a falta de conformidade for insignificante (art. 3.º/6), a opção pela resolução não parece ficar condicionada por esse critério, apenas sendo excluída no caso de ser impossível ou constituir abuso do direito[12].
Calvão da Silva[13] considera que, apesar de o DL 67/2003 não ter transposto a estrutura hierarquizada dos direitos previstos na Directiva, o consumidor tem de subordinar a escolha da solução aos ditames da boa fé, por forma a não incorrer no exercício ilegítimo do direito de opção que lhe confere o n.º 5 do art. 4.º do citado diploma. Por isso, se a escolha da pretensão cabe ao comprador deve, não obstante, obedecer ao princípio da boa fé e não cair no puro arbítrio, pelo que, se num caso concreto a opção exercida exceder os limites da boa fé, poderão intervir as regras do abuso do direito.
Romano Martinez[14] compara a Directiva e o CC em termos de hierarquização dos direitos do consumidor, considerando que a resolução se encontra na dependência da inviabilidade da reparação do defeito e da substituição da obra. Já o art. 4.º do DL 67/2003 não estabelece qualquer primazia. No entanto, entende que só uma leitura literal permite concluir pela possibilidade do exercício pelo consumidor de qualquer dos direitos, desde logo pela resolução do contrato, por esta interpretação não ser razoável, dado que a resolução é sempre a última solução e, nos termos gerais, depende do preenchimento de pressupostos comuns, como sejam o não cumprimento definitivo ou a gravidade. Por isso, pretende que o disposto no n.º 5 do art. 4.º tem de ser enquadrado nos termos gerais, pelo que a opção do consumidor pela resolução se encontra condicionada pelo preenchimento dos pressupostos comuns, devendo atender-se ao regime dos art.s 432.º e ss., 801.º/2, 808.º/1 e 913.º do CC.
A ser aplicável esta solução teríamos de afastar a pretensão da A., mesmo à luz da compra e venda de bens de consumo, por não ter respeitado a hierarquia legal.
No entanto, estamos com os outros autores, quando consideram que o n.º 5 do art. 4.º do DL 67/2003 não permite esta reserva[15], pelo que temos que ver se, efectivamente, opera o abuso do direito.
Como se diz na sentença, a A. examinou o veículo, que era usado e não se provou que o vendedor tivesse dito que após revisão ficaria como novo.
Por isso, nem todos os defeitos são atendíveis, desde logo aqueles dos quais a A. se podia ter apercebido com o exame que lhe fez.
Na sentença diz-se que o são os pneus carecas da frente e a “chiadeira”, excluindo-se os riscos exteriores, por serem perceptíveis para a A.. Mas também as borrachas vedantes de ambas as portas, que estavam rasgadas, o equipamento de som, que não correspondia ao que é de série neste modelo, o encaixe do cinto do condutor, que estava envolvido em fita-cola preta, a luz de presença no interior do automóvel, que não funcionava devem ser considerado como não tendo sido percepcionados, porque só resultou provado que o exame da A. foi ao exterior do veículo.
A razão de ser da desconsideração dos defeitos perceptíveis reside no respectivo conhecimento afastar a garantia edilícia, devido ao conhecimento do vício ou à falta de qualidades da coisa pelo comprador, como se referiu supra.
Quando da entrega o veículo não estava registado na Conservatória do Registo Automóvel em nome da A., nem a esta foi entregue documento para a promoção do registo, o que fez com que o automóvel continuasse em nome de outrem; como também lhe não foi entregue o documento de circulação emitido pela Conservatória do Registo Automóvel, o que motivou, por a autorização de circulação ter um período de validade de 30 dias, que terminasse em 10.11.2007, podendo, apesar de tudo, ser ultrapassada esta situação com a emissão de nova declaração do vendedor.
Se não sabemos o conteúdo da primeira reclamação feita pela A. ao vendedor, podendo suspeitar-se, por se ter tratado de uma reclamação, que pretendeu a eliminação dos vícios do carro, a subsequente carta e a notificação judicial avulsa já vão no sentido da resolução do contrato. Propósito evidenciado também quando recebeu da Ré em 28.02.2008 o certificado de matrícula do veículo, que logo devolveu por carta no dia seguinte.
Visto que o DL 67/2003 não hierarquiza os direitos, a A. pode pedir a resolução do contrato com fundamento nos defeitos da viatura que não eram do seu conhecimento. Tanto mais que, como se disse, o diploma que regula a venda dos bens de consumo não transpôs a solução da Directiva que exclui que o consumidor opte pela rescisão quando a falta de conformidade seja irrelevante. Nem em rigor podemos dizer que os vícios apontados o sejam. Desde logo, o custo da substituição dos pneus da frente, segundo a experiência comum, não é insignificante, e desconhece-se a causa da “chiadeira” do carro, que pode ter a ver com a suspensão, o que também não permite concluir por problema de somenos importância.
Por isso, não vemos que se possa concluir pela existência de uma desproporção acentuada entre o exercício do direito de resolução e a dimensão dos defeitos que o fundam, a exigir que se lance mão do instituto do abuso do direito. Na economia do contrato só uma desproporção manifesta entre a resolução pretendida e a insignificância dos meios necessários à reparação dos defeitos pode apontar para o abuso.
Há que reparar que a Ré, apesar da reclamação inicial feita pela A., cujo conteúdo desconhecemos, e ante a carta e a notificação judicial dirigidas à resolução, não tomou qualquer atitude, não se prestando a solucionar os problemas existentes. Aliás, o vendedor deixou de atender os telefonemas da A..
Como se diz no acórdão do Supremo supra citado, «a desproporção só existiria se o regime aplicável aos efeitos da resolução do contrato não permitisse respeitar o “princípio da justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4ª ed., Coimbra, 1997, pág. 206), princípio manifestamente prosseguido pelas regras aplicáveis à venda de bens defeituosos.
E a verdade é que a regra de que a resolução tem eficácia retroactiva (nº 1 do artigo 434º), sendo equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou anulabilidade (artigo 433º), tem de ser conjugada com diversos preceitos que se destinam justamente a evitar que, por essa via, uma das partes enriqueça, injustificadamente, à custa da outra; e, note-se, não impede que, sendo caso disso, a parte que a invoca tenha o direito a ser indemnizada pelos prejuízos sofridos (pelo menos, pelos que não teria sofrido se não tivesse celebrado o contrato).
Assim resulta, por exemplo, do disposto no nº 2 do artigo 432º, do nº 2 do artigo 434º (cujo espírito, segundo Calvão da Silva – op. cit., pág. 85 – pode justificar a redução do valor a restituir por força da resolução, em caso de utilização do bem pelo consumidor) ou nos nºs 1 e 3 do artigo 289º e no artigo 290º.
Nestes termos, não havendo elementos que permitam considerar abusivo o exercício do direito de resolução (nº 5 do artigo 4º do Decreto-Lei nº 67/2003 e artigo 334º do Código Civil), e estando preenchidos os requisitos exigidos pelos artigos 2º (al. a) do nº 2), 3º e 4º do DL 67/2003, procede o pedido de resolução.».
Também no nosso caso não se vê que exista a desproporção que teria como consequência o afastamento do pedido de resolução, o qual, por isso, devia proceder.
Acontece que se levanta um obstáculo à procedência da acção.
Decorre ele da caducidade invocada pela Ré na contestação. Aí ela afirma que o n.º 4 do art. 921.º do CC fixa o prazo de seis meses, após a denúncia do defeito, para a propositura da respectiva acção, e que o art. 917.º, caso ela tivesse invocado um vício de vontade relevante, fixa idêntico prazo.
É verdade que fazemos um enquadramento jurídico dos factos diverso do preconizado pela Ré, incluindo-os no âmbito da compra e venda de bens de consumo, mas isso não afasta que se deva ter como válida a arguição da caducidade, havendo que ver em que moldes ela se insere neste particular campo.
Se fosse aplicável ao DL 67/2003 a redacção introduzida pelo DL 84/2008, não há dúvida que a acção tinha sido interposta em tempo. Com efeito, o art. 5.º-A introduzido pelo último diploma dispõe:
Prazo para exercício de direitos
1 — Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 — Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.
3 — Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.
4 — O prazo referido no número anterior suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objectivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com excepção da arbitragem.
5 — A tentativa de resolução extrajudicial do litígio inicia-se com a ocorrência de um dos seguintes factos:
a) As partes acordem no sentido de submeter o conflito a mediação ou conciliação;
b) A mediação ou a conciliação seja determinada no âmbito de processo judicial;
c) Se constitua a obrigação de recorrer à mediação ou conciliação.
Verifica-se, assim, que tendo a compra e venda ocorrido em 09.10.2007, a A. denunciou os vícios na carta endereçada à Ré em 21.11.2007, por conseguinte dentro do prazo de dois meses estabelecido pelo n.º 2 do artigo transcrito.
E tempo proposto a acção em 11.11.2008, também respeitou o prazo de dois anos constante do seu n.º 3.
Todavia, esta redacção não é aplicável in casu, visto que este diploma, segundo o seu art. 5.º, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, isto é, em 21.06.2008.
Por isso, a que se aplica é a redacção primitiva do art. 5.º do DL 67/2003:
Prazos
1 - O comprador pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.
2 - Tratando-se de coisa móvel usada, o prazo previsto no número anterior pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes.
3 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.
4 - Os direitos conferidos ao consumidor nos termos do n.º 1 do artigo 4.º caducam findo qualquer dos prazos referidos nos números anteriores sem que o consumidor tenha feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses.
5 - O decurso dos prazos suspende-se durante o período de tempo em que o consumidor se achar privado do uso dos bens em virtude das operações de reparação da coisa.
Deste modo, segundo o n.º 4, a caducidade operou seis meses decorridos sobre a denúncia, isto é, em 21.05.2008. Pelo que o direito da A. se extingui por caducidade antes da entrada em vigor da redacção do DL 84/2008, que aconteceu apenas em 21.06.2008[16]. E quando ela intentou a acção, em 10.11.2008, já estava caduco. Razão pela qual se não pode lançar mão da norma estabelecida pelo n.º 2 do art. 297.º do CC, cuja operacionalidade depende de o prazo alargado estar ainda em curso, o que in casu não sucede.
Sumário:
- O n.º 5 do art. 4.º do DL 67/2003, de 08.04, contrariamente ao disposto no CC e na Directiva que transpôs, não hierarquiza os direitos do consumidor relativamente aos defeitos da coisa adquirida, permitindo que seja exercido qualquer deles, salvo caso de impossibilidade ou abuso de direito.
- A redacção daquele diploma introduzida pelo DL 84/2008, de 21.05, quanto ao alargamento do prazo de caducidade, não se aplica às situações anteriores à sua entrada em vigor, cujos prazos já tenham decorrido inteiramente, mas apenas aos que ainda estiverem em curso (art. 297.º/2 do CC).
Face ao exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a sentença, embora com outros fundamentos.
Custas pela apelante.
Porto, 15 de Setembro de 2011
Trajano A. Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
Leonel Gentil Marado Serôdio
___________________
[1] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, 7.ª ed., p. 122
[2] Ibid.
[3] Ibid., p. 123
[4] Ibid., p. 124
[5] Ibid., e p. 125
[6] Ibid., e p. 126
[7] Ibid., p. 127
[8] Ibid., p. 129
[9] Ibid., pp. 137-138
[10] Ibid., p. 157
[11] Ibid., p. 158
[12] Ibid., p. 159
[13] Venda de Bens de Consumo, Almedina, pp. 86-87
[14] Da cessação do Contrato, 2.ª ed., pp. 272-273
[15] Acórdão do STJ de 30.09.2010, Proc. 822/06.9TBVCT.G1.S1, www.dgsi.pt
[16] Cfr. acórdão desta Relação de 09.07.2009, Proc. 2027/08.5TJPRT.P1, www.dgsi.pt, onde se considerou não ser aplicável nos autos a redacção do DL 84/2008, por a situação dos autos ter ocorrido antes da sua entrada em vigor