Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1.
Na 9ª Vara Cível de Lisboa, Deco - Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor requereu a aplicação de sanção pecuniária compulsória contra o Banco AA, S.A., alegando que, por acórdão de 28/6/01, do Tribunal da Relação de Lisboa, a requerida foi condenada a abster-se de utilizar, em todos os contratos que de futuro viesse a realizar com os seus clientes, a cláusula nº 5.2, constante dos seus contratos de utilização de cartão de débito/crédito do Sotto Mayor, por ter considerado inadmissível a livre denúncia do contrato por parte do Banco, sem qualquer justificação ao cliente.
Mais alega que, não obstante, a requerida mantém, actualmente, nos seus contratos, uma cláusula substancialmente idêntica à que foi declarada nula, o que a requerente verificou ter acontecido pelo menos em dois contratos, já que apenas inseriu um prazo de aviso prévio de 15 dias, que, aliás, se revela claramente insuficiente.
Alega, ainda, que, desse modo, a requerida infringe a obrigação de se abster de utilizar as cláusulas contratuais gerais que foram objecto de proibição definitiva por decisão transitada em julgado, constante do art. 33°, nºl, do DL. nº 446/85, de 25/10, pelo que, incorre numa sanção pecuniária compulsória.
Conclui, assim, que, verificando-se a existência de, pelo menos, duas infracções, deve ser decretada a aplicação de sanção pecuniária compulsória no valor de € 59.855,76.
Ouvida a requerida, veio alegar que deu total aplicação ao citado acórdão, pois que alterou as cláusulas em causa e apôs um prazo de denúncia cuja duração provém das directrizes do Banco de Portugal.
Mais alega que, só após decisão judicial, que, porventura, determine serem as novas cláusulas «substancialmente idênticas» às anteriormente sindicadas e seu não acatamento, é que haverá infracção subsumível à previsão do citado art. 33°, nº1.
Conclui, deste modo, que deve ser inteiramente indeferido o requerimento da «Deco».
Foi proferida decisão, julgando justificada a aplicação à requerida de uma sanção pecuniária compulsória, que fixou no valor de € 25.000,00 e, bem assim, na quantia de € 2.555,00, sempre que, após trânsito em julgado da decisão, se verifique a utilização da cláusula em questão em contratações individuais.
Inconformada, a requerida interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 26.9.06, manteve a decisão.
Ainda irresignada, recorreu de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a respectiva alegação pela seguinte forma:
Da simples circunstância de a nova cláusula introduzida pela recorrente em alguns formulários de contratos dever ser considerada nula à luz do mesmo preceito que vedava a utilização da cláusula proibida não se pode retirar a conclusão de que esta nova cláusula é substancialmente idêntica àquela.
A alteração introduzida não se reveste de natureza formal, consistindo antes numa alteração de natureza substancial, pois ocorreu uma relevante modificação do conteúdo da cláusula, na medida em que passou a ser exigido ao Banco o cumprimento de um pré-aviso mínimo de 15 dias para poder proceder à resolução do contrato.
A exigência de um prazo mínimo de antecedência para a comunicação da intenção de pôr fim aos contratos é um elemento relevante para a salvaguarda dos legítimos interesses dos clientes com quem os Bancos ou outras instituições estabelecem relações comerciais, no sentido de se evitar que aqueles clientes sofram danos, incómodos ou transtornos derivados da súbita e inesperada quebra das suas expectativas de crédito ou de fornecimento de bens ou serviços.
Ao estabelecer-se o prazo de pré-aviso, mesmo quanto à resolução não fundamentada do contrato, as expectativas contratuais dos clientes ficariam sempre reforçadas, pelo que não existe identidade entre as duas cláusulas em apreço.
A natureza sancionatória da sanção pecuniária compulsória exige uma particular cautela na interpretação das normas que permitem a sua aplicação e impõe, no caso concreto, um entendimento especialmente rigoroso e restritivo quanto ao conceito de «equiparação substancial».
Assim, ao entender que a cláusula nº 6, al. j), incluída em contratos posteriores ao trânsito em julgado da decisão que proibiu definitivamente a utilização da cláusula nº 5.2, anteriormente usada, se equipara substancialmente a esta última, e ao considerar justificada a consequente aplicação de uma sanção pecuniária compulsória à recorrente, a decisão recorrida violou, pois, o disposto no nº1 do art. 32° e no n°1 do art. 33°, ambos do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
Nas contra-alegações, a requerente pronunciou-se pela manutenção do acórdão impugnado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2.
Estão provados os seguintes factos:
Por sentença proferida em 2/8/00, na 9ª Vara Cível da Comarca de Lisboa, a cláusula respeitante ao cancelamento do cartão de forma unilateral e sem aviso prévio, ou seja, no caso, a cláusula 5.2 do cartão Sotto Mayor, foi declarada nula, por ao consumidor não ter sido conferida a possibilidade de beneficiar de pré-aviso ou de prazo razoável para que a denúncia ou a resolução do contrato produzisse efeito, o que traduz violação do disposto nos arts. 19°, al. f) e 22°, nºl, al. b), do DL. nº 446/85.
Naquela sentença, foi a ré condenada a não mais utilizar a referida cláusula nos seus contratos com os particulares, fazendo-a desaparecer dos clausulados-tipo das respectivas «Condições Gerais», e, ainda, a dar publicidade à proibição, nos termos aí mencionados.
Tendo a ré interposto recurso daquela sentença, foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/6/0 l, onde se julgou o mesmo improcedente e se manteve o decidido na lª instância.
Nesse acórdão, considerou-se que a cláusula em questão permite que o predisponente - que não o cliente - possa denunciar livremente o contrato sem justificação, o que é expressamente proibido pelos arts. l9°, al. f) e 22°, nºl, al. b), do DL. nº 446/85, de 25.10. E referiu-se, ainda, no mesmo Acórdão: «Como acentua o Ac. da Rel. de Lx., de 26.11.1998 (C.J. 1998, 111), esta faculdade pode causar danos, incómodos e transtornos à contra parte, designadamente ao cliente/aderente, que pode ver frustrada a legítima expectativa de crédito assente na utilização do cartão e que instantaneamente vê ser-lhe negada sem qualquer justificação, nem aviso.
Bem se compreende que aqueles preceitos firam de nulidade tais cláusulas. Este entendimento pode confortar-se com o decidido nos Acórdãos do STJ, de 23.11.2000, C.J. 2000, 3, pág. 137 e Ac. Rel. Lx., de 4.2.1999, C.J. 1999, 1, 106».
Tendo a ré Banco AA, S.A., interposto recurso daquele acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi negada a respectiva revista, por Acórdão do STJ, de 4/6/02.
São do seguinte teor as cláusulas 5.1 e 5.2 das condições gerais de utilização do cartão Sotto Mayor classic:
«5.1 O cartão SOTTOMAYOR CLASSIC terá um prazo de validade que figurará impresso na frente do mesmo e, sem prejuízo da sua substituição em tempo oportuno, não poderá ser utilizado em data posterior à da referida validade.
5.2 Não obstante, o Banco Pinto e Sotto Mayor reserva-se o direito de cancelar o Cartão em qualquer momento do prazo de validade do mesmo, assim como o de proceder à sua revalidação no final da validade, sem que para isto tenha que apresentar qualquer justificação, perdendo o seu titular e portador todos os direitos inerentes à sua posse e uso».
Em contrato recolhido pela requerente, durante o mês de Outubro de 2002, nas instalações da requerida, sitas na Praça do Chile, em Lisboa, consta a cláusula nº 6, al.j), que se transcreve: «Em outras situações, o Banco poderá cancelar o cartão dentro do período de validade e proceder à denúncia do presente contrato, desde que comunique essa intenção ao Titular, com pré-aviso de 15 dias relativamente à data em que se pretende proceder ao cancelamento. Decorrido o prazo de pré-aviso, o Banco fica autorizado a impedir a utilização do cartão, permanecendo o Titular responsável por todas as utilizações efectuadas com o cartão até ao momento da recepção deste pelo Banco».
Em contrato recolhido pela requerente, durante o mês de Junho de 2003, nas instalações da requerida, sitas na Av. Guerra Junqueiro, em Lisboa, consta a cláusula nº 6, al. j), precisamente do mesmo teor da anterior.
Na decisão recorrida, considerou-se, após citações retiradas do mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28/6/01, que a proibição contida nos arts. 19°, al. f) e 22°, nº1, al.b), do DL. nº 446/85, abrange não só a falta de pré-aviso adequado para a denúncia, mas também as situações em que tal denúncia possa ser imotivada, pelo que, a alteração da redacção da referida cláusula 5.2, por continuar a não prever qualquer motivação para a efectivação da denúncia, viola o decidido nos presentes autos, justificando, assim, a aplicação à requerida de uma sanção pecuniária compulsória.
3. O Direito.
A única questão que interessa apreciar traduz-se em saber se a referida cláusula nº 6, a1.j), incluída em contratos que a requerida celebrou depois do trânsito em julgado da decisão que proibiu definitivamente a cláusula nº 5.2, e que é formalmente diferente desta, se lhe equipara substancialmente e se, por isso, não podia ser incluída nos aludidos contratos, nos termos do disposto no art. 32°, nº1, do DL. nº 446/85, de 25/10.
Estamos no domínio do direito relativo aos contratos.
Neste âmbito, a vontade das partes, na composição dos interesses e na disciplina das relações que estabelecem entre si, é soberana. As partes estabelecem a lei da relação contratual e o direito reconhece-lhe juridicidade.
Esta atitude da lei assenta no pressuposto de uma vontade sã, livre e informada. No pressuposto de que a relação se estabelece entre homens livres e iguais e que sabem o que melhor convém aos seus interesses.
A questão da intervenção do legislador na limitação desta vontade surge, precisamente, por se saber que, na prática, aqueles pressupostos nem sempre se verificam, sem esquecer as intervenções ditadas para defesa da ordem pública ou dos bons costumes.
Uma das ocorrências em que passou a ser imperiosa a intervenção do legislador no controle dessa liberdade foi a introdução no comércio jurídico dos chamados negócios de massas, em que uma das partes apresenta uma elaborada regulamentação de negócios que previa ir realizar com um indeterminado número de interessados.
Esta modalidade de contratação afasta-se daquilo que poderíamos designar como o paradigma do processo de contratação, que está consagrado no nosso Código Civil; ou seja, as partes contratantes, em posição de igualdade e por aproximações sucessivas, vão definindo o que consideram ser seu interesse, até alcançarem o patamar final, livremente negociado, num processo do qual nunca está ausente o poder recíproco de aceitação ou de rejeição. Os contratos são concluídos, em regra, após negociações prévias, com propostas e contrapropostas, de tal sorte que uma das partes fique a saber dos seus direitos e obrigações quando os mesmos se formalizarem.
Se num contrato negociado o conteúdo deste beneficia da presunção de que corresponderá à vontade de ambas as partes, isso já não acontece, quando estão em causa as cláusulas contratuais gerais.
Neste caso, a liberdade da contraparte fica praticamente limitada a aceitar ou a rejeitar, sem poder realmente interferir, ou interferir de forma significativa, na conformação do conteúdo negocial que lhe é proposto, visto que o emitente das condições gerais não está disposto a alterá-las ou a negociá-las; se o cliente decidir contratar, terá de se sujeitar às cláusulas previamente determinadas por outrem, no exercício de um law making power de que este, de facto, desfruta, limitando-se aquele, pois, a aderir a um modelo prefixado" (cfr. António Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pag. 748; Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, pags. 96 e sgs; Vaz Serra, Obrigações, Ideias Preliminares, pags. 162 e sgs; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral; Almeida Costa, Direito das Obrigações, pags. 196 e sgs; Mota Pinto, Contratos de Adesão, Revista de Direito e de Estudos Sociais, pags. 119 e sgs.).
A observância do cumprimento dos imperativos constitucionais de combate aos abusos do poder económico e de defesa do consumidor, aliada à necessidade de preservar a autonomia privada, determinaram o legislador português, à semelhança de outros ordenamentos jurídicos europeus, à regulamentação das cláusulas contratuais gerais (também designadas "condições negociais gerais ", "contratos de ou por adesão ", "contratos de série " e "contratos standartizados), elaboradas de antemão, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou a aceitar (cfr. João Lobo, O Contrato no Direito Civil Português: Seu Sentido e Evolução, pag. 181).
O DL. nº 446/85, na redacção dada pelo DL. nº 220/95, é o diploma através do qual se instituiu, em Portugal, o regime a que estão sujeitas as cláusulas contratuais gerais.
Este diploma legal atravessa, longitudinalmente, todo o ordenamento jurídico português e é aplicável a todo o tipo de negócios em cujos contratos singulares ou elaborados em forma de minuta, para o futuro, se incluam cláusulas contratuais gerais, só cedendo perante as excepções que ele próprio a si mesmo se impôs e que constam do seu art. 3º, cuja redacção foi alterada pelo DL. 220/95, de 31 de Agosto, (diploma que transpôs para o ordenamento jurídico português a Directiva nº 93/13/CEE do Conselho de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores), ou seja, cláusulas típicas aprovadas pelo legislador, cláusulas que resultem de tratados ou convenções internacionais vigentes em Portugal, contratos submetidos a normas de direito público, actos do direito da família ou do direito das sucessões e cláusulas de instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho.
Os potenciais destinatários deste regime são as companhias de seguros, empresas de transporte, bancos, empresas de fornecimento de água, energia eléctrica ou gás, empresas que se dedicam à transmissão de bens, de maquinaria, de automóveis, de electrodomésticos, etc. (v. António Pinto Monteiro, Contratos de Adesão, pag. 740, e Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. 1, pag. 262).
No regime instituído por estes diplomas legais descortinam-se duas vias teleologicamente orientadas no sentido da tutela dos aderentes contra cláusulas contratuais injustas: uma, visando as cláusulas já integradas em contratos singulares; outra, a de que o interessado se pode socorrer nos casos em que a cláusula ainda não está integrada em contrato singular ou independentemente dessa integração.
Para a 1ª situação, estatui-se a nulidade, invocável nos termos gerais (arts. 12º e 24º do aludido DL. nº 446/85); para a 2ª, adoptou-se o esquema da acção inibitória (art. 25º).
A decisão que proibiu definitivamente a cláusula 5.2 consta da sentença proferida na 1ª instância, em 2/8/00, tendo a ré, ora recorrente, sido condenada, além do mais, a não utilizar a referida cláusula nos seus contratos com os particulares, fazendo-a desaparecer dos clausulados-tipo das respectivas condições gerais, por ao consumidor não ter sido conferida a possibilidade de beneficiar de pré-aviso ou de prazo razoável para que a denúncia ou a resolução do contrato produzisse efeito, o que traduz violação do disposto nos arts. 19°, a1.f) e 22°, nº1, a1.b), do DL. nº 446/85, de 25/10.
Por seu turno, o aludido Acórdão da Relação de Lisboa, de 28/6/01, manteve o decidido naquela sentença, por considerar que a cláusula em questão permite que o predisponente possa denunciar livremente o contrato sem justificação, o que é expressamente proibido pelos citados artigos, podendo tal faculdade causar danos e incómodos à outra parte, por ver frustrada a legítima expectativa de crédito assente na utilização do cartão, já que vê, instantaneamente, ser-lhe negada, sem qualquer justificação, nem aviso.
Por último, o mencionado Acórdão do STJ, de 4/6/02, negou a revista.
Entretanto, após o trânsito em julgado daquela decisão proferida na 1ª instância, foram detectadas duas situações de contratos em que o Banco AA fez inserir a cláusula nº 6, al. j), que lhe confere o poder de cancelar o cartão dentro do período de validade e proceder à denúncia do contrato, desde que comunique essa intenção ao titular com pré-aviso de 15 dias relativamente à data em que se pretende proceder ao cancelamento.
Trata-se, pois, de saber se a demandada, vencida na acção inibitória, infringiu ou não a obrigação de abstenção a que alude o art. 32º, nº1, do DL. nº 446/85.
Nos termos deste artigo, «As cláusulas contratuais gerais objecto de proibição definitiva por decisão transitada em julgado, ou outras cláusulas que se lhes equiparem substancialmente, não podem ser incluídas em contratos que o demandado venha a celebrar, nem continuar a ser recomendadas».
Acrescentando o nº1 do art. 33° do mesmo diploma legal, que «Se o demandado, vencido na acção inibitória, infringir a obrigação de se abster de utilizar ou de recomendar cláusulas contratuais gerais, que foram objecto de proibição definitiva, por decisão transitada em julgado, incorre numa sanção pecuniária compulsória que não pode ultrapassar o dobro do valor da alçada da Relação por cada infracção».
Sendo que, nos termos do nº 2, do mesmo art. 33°, «A sanção prevista no número anterior é aplicável pelo tribunal que apreciar a causa em 1ª instância, a requerimento de quem possa prevalecer-se da decisão proferida, devendo facultar-se ao infractor a oportunidade de ser previamente ouvido».
Sem entrarmos, ainda, na apreciação, em concreto, das cláusulas controvertidas, importa ter presente que, nos últimos anos, tem-se verificado uma vasta e progressiva desmaterialização dos meios de pagamento em que se inserem variadíssimas operações de transferências electrónicas de fundos, com o levantamento de numerário em caixas automáticas e o pagamento electrónico de bens e serviços.
Antes da revolução informática, as várias operações processavam-se através de funcionários, a quem o cliente dava as suas ordens, que por eles eram cumpridas e devidamente registadas.
Com a dita revolução, os bancos, no seu interesse, não esquecendo que o cliente também viu facilitada a movimentação e controlo da sua conta, criaram sistemas informáticos capazes de prestar, com economia, rapidez e comodidade, os serviços de conta que, anteriormente, prestavam com um exército de funcionários.
A atribuição de cartões do tipo dos visados nas cláusulas trazidas a juízo integra-se num desses sistemas.
Os “cartões de plástico”, intimamente relacionados com as transferências electrónicas de fundos, na medida em que são um instrumento necessário para a realização de algumas dessa operações, podem ser classificados, designadamente, tendo em conta não só a entidade que os emite, como também a função que lhes é inerente.
De acordo com o critério da sua função, como é sublinhado pelo Ac. STJ, de 11.10.2001 (CJ, III-79/80), esses cartões reconduzem-se a várias categorias, das quais se destacam os cartões de débito, os cartões de crédito, os cartões de garantia de cheques, os cartões universais ou de despesa, os cartões de pré-pagamento e os cartões de desconto.
Tais categorias, no entanto, além de não serem perfeitamente definidas, têm conexões entre si, o que significa que às seis funções apontadas, eventualmente subjacentes à emissão de um “cartão de plástico”, não correspondem, necessariamente seis cartões distintos, sendo comum a acumulação de várias funções no mesmo cartão (cfr. Maria Raquel Guimarães, As transferências Electrónicas de Fundos e os Cartões de Débito, Almedina, 1999, pags. 55, 58, 63 e 64).
Subjacente ao levantamento de numerário de uma máquina automática de caixa e à operação de pagamento automático está um contrato, designado por “contrato de utilização” do cartão.
Para uns, este contrato é um verdadeiro contrato autónomo, querido pelas partes.
Segundo outros – e é este o entendimento que reputamos mais acertado -, trata-se de um contrato acessório instrumental, em relação ao contrato de depósito bancário ou ao de abertura de crédito em conta corrente, acessoriedade revelada não apenas pela função do próprio contrato, mas também pelo seu destino, dependente das vicissitudes daqueles tipos contratuais (Maria Raquel Guimarães, ob. cit., pags. 107/112).
As cláusulas do “contrato de utilização” – contrato pré-elaborado e que apresenta todas as características de contrato de adesão – são unilateralmente impostas pelo banco, que é, em regra, o contraente mais forte, reduzindo-se a liberdade contratual do titular do cartão à decisão de aderir ou não ao contrato.
“Daí a exigência de um controlo a posteriori – controlo incidental – das condições gerais inseridas nesse tipo de contrato, ou do seu controlo preventivo – controlo abstracto -, através de uma acção inibitória, destinada a erradicar do tráfico jurídico condições gerais iníquas, independentemente da sua inclusão em contratos singulares, com vista ao restabelecimento do adequado equilíbrio, perdido na contratação massificada” (Ac. do STJ citado).
Feita esta introdução, é tempo de dirigir a nossa atenção sobre a questão essencial do recurso.
Nos termos do art. 22°, nº1, al. b), do DL. nº 446/85, são proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, as cláusulas contratuais gerais que «Permitam, a quem as predisponha, denunciar livremente o contrato, sem pré-aviso adequado, ou resolvê-lo sem motivo justificativo, fundado na lei ou em convenção».
A resolução é a destruição da relação contratual, operada por acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam, se o contrato não tivesse sido celebrado (A. Varela, Obrigações, 3ª ed. 2º-242).
A denúncia, por seu turno, traduz-se na declaração feita por um dos contraentes ao outro, em regra com certa antecedência sobre o termo do período negocial em curso, de que não quer a renovação ou a continuação do contrato renovável ou fixado por termo indeterminado,
A resolução, ao contrário da denúncia (ainda que, em certos casos, como, por exemplo, a denúncia do contrato pelo senhorio, só seja possível nos casos e na forma prevista na lei), assenta, por via de regra, num poder vinculado, obrigando-se o autor a alegar e provar o fundamento previsto na convenção das partes ou na lei (arts. 801º, nº 2 e 802º, nº1, do C.Civil) que justifica a destruição unilateral do contrato, embora também possa ser confiada ao poder discricionário do contraente (v.g. arts. 927º e ss.); por outro lado, o fundamento invocável pode consistir num facto danoso (arts. 801º, 802º, 1050º, 1075º e 1093º) ou numa mera razão de conveniência justificada; finalmente, tanto pode ser judicial (v.g. arts. 1047º e 1049º) ou extrajudicial.
No nosso caso, estamos perante contratos de prestação duradoura por tempo determinado, como é referido no acórdão recorrido, pois que os cartões têm um prazo determinado de validade, sendo certo, por outro lado, que a prestação não se esgota num só momento, antes se distende no tempo.
Deste modo, a denúncia deve fazer-se para o termo do prazo da sua renovação, não se justificando falar em falta de motivo justificado.
E se assim é, então a cláusula nº 6, al. j) não contém uma verdadeira denúncia, mas antes uma resolução, permitindo à requerida destruir o vínculo contratual, em plena vigência deste, sem necessidade de invocar qualquer motivo para tal. Estabelece-se, no fim de contas, uma verdadeira resolução ad nutum.
Todavia, a resolução tem de ser motivada, só sendo legítima, pois, quando verificado o pressuposto, o evento, erigido em causa de resolução.
O acórdão da Relação de Lisboa, de 28.6.01, na acção inibitória, considerou que as cláusulas 5.1 e 5.2 permitiam ao predisponente - que não ao cliente - denunciar livremente o contrato, sem justificação, o que era expressamente proibido pelos arts. 19°, al. f) e 22°, nºl, al. b), do DL. nº 446/85, de 25.10, e, citando o acórdão da mesma Relação, de 26.11.98, considerou que esta faculdade podia causar danos, incómodos e transtornos à contra parte, designadamente ao cliente/aderente, que podia ver frustrada a legítima expectativa de crédito assente na utilização do cartão e que, instantaneamente, via ser-lhe negada sem qualquer justificação, nem aviso.
Pois bem, a cláusula nº 6, al. j), não obstante prever um pré-aviso de 15 dias para aquilo a chama “denúncia”, acaba por conduzir ao mesmo resultado; ou seja, os titulares dos cartões podem ver-se deles privados, dentro do prazo de vigência do contrato, sem qualquer justificação, com a inerente frustração da legítima expectativa de crédito que a sua utilização implica.
O que significa que tal cláusula é substancialmente idêntica à anterior cláusula 5.2.
Sendo assim, essa cláusula não poderia ser incluída nos contratos que a requerida celebrou depois do trânsito em julgado da decisão que proibiu, definitivamente, a cláusula 5.2.
E porque é assim, incorre na sanção pecuniária compulsória prevista no citado art. 33º, nº1, cujo montante não é questionado no recurso.
4.
Face ao exposto, decide-se negar a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 17 Maio de 2007
Oliveira Rocha (relator)
Gil Roque
Oliveira Vasconcelos