Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :
RELATÓRIO:
A…, residente em …, intenta a presente acção, declarativa, de condenação, com processo sumário, ao abrigo da redacção do CPC anterior à Lei nº 41/2013, de 26.6, contra O…Ld.ª ", com sede em …e Banco C…, com sede em…, pedindo, a final, que o Tribunal declare a nulidade de contrato de compra e venda, por violação do disposto no art.º 16°, nº 1, do DL nº 143/2001, de 26.4, ou a anulabilidade do contrato de compra e venda por violação do disposto na al. i) do art.º 8° e n° 1 e al. b) do n° 4, do art.º 9° do Regime Jurídico das Vendas Agressivas e a nulidade do contrato de crédito celebrado com a 2a Ré, por violação do disposto no 6° e 7° e 12° do DL n" 133/2009, bem como, condenar-se a 2a Ré a restituir o valor das prestações já debitadas na conta do Autor acrescidas de juros à taxa legal, valor a liquidar em execução de sentença.
Para tanto, alega o Autor que a 1ªRé organizou uma demonstração dos seus produtos no centro de dia do centro social do Ramalhal, designadamente de uma cadeira de massagens, tendo vendido uma ao Autor, que a mesma tinha conhecimento dos parcos rendimentos do público-alvo das suas vendas, e das suas capacidades cognitivas diminuídas, em razão da idade, e, no caso concreto, dos parcos rendimentos do A., bem como do facto de este não saber ler, nem escrever, de não estar acompanhado de nenhum familiar ou amigo, a fim de tomar uma decisão de compra devidamente esclarecida.
Foram preenchidas, em nome do A., por não saber ler, nem escrever, as propostas de crédito, mas já não foi reduzida a escrito a venda da cadeira de massagens, tendo ficado apenas com as especificações técnicas da cadeira, e não tendo ficado igualmente com uma cópia do contrato de crédito.
Desconhecendo o A., no momento da venda, o montante das prestações e a taxa de juro aplicável, pelo que o montante de cada prestação só foi conhecido após o débito em conta do A. no valor de €103,04, durante 48 meses, e que continuam a ser debitadas na conta do mesmo.
Alega que se tivesse sido informado do montante das prestações o mesmo veria que não seria compatível com os seus parcos rendimentos, não tendo os contratos sido lidos, nem explicados ao Autor pela 1ªRé.
Citadas para os termos da presente acção, ambas as Rés contestaram a acção, alegando a Ré C…, "ab initio", a excepção de abuso de direito porquanto o A. vem alegar, após quase três anos de vigência do contrato, não ter conhecimento do mesmo, o que contraria a boa-fé.
Ainda, mais alega, com base nas concretas circunstâncias de celebração do contrato, que identifica, que o A. teve conhecimento do mesmo.
Ainda, sustenta que o contrato de compra e venda foi reduzido a escrito e assinado pelo Autor, juntando uma cópia do mesmo.
Já a Ré O… contesta a acção alegando que o A. foi esclarecido de todas as qualidades e propriedades e demais características dos produtos em causa, e que deste modo foi livre e conscientemente que o A. decidiu adquirir o bem comercializado por si. Mais acrescenta que existiu reconhecimento da impressão digital do Autor, e da sua assinatura a rogo, o que obrigou a que o Advogado que fez os reconhecimentos se tivesse certificado de que o A. sabia os exactos termos constantes dos contratos e que tinha cesso a cópia de todos os documentos exigidos pela lei .
Ainda, alega que o A. recebeu cópia dos contratos, que os entendeu e os quis celebrar, não tendo manifestado qualquer reserva.
Ambas as Rés concluem que inexistem fundamentos para a nulidade dos contratos.
Factos Provados:
1. O Autor apôs a sua impressão digital no escrito de fls. 60, verso do mesmo, datado de 9.3.2010, cujo teor integral aqui se dá por reproduzido.
2-O local onde ao Autor foi apresentado, para subscrição, o escrito de fls. 60, foi no centro social de dia do.., no âmbito de uma acção de demonstração de uma cadeira de massagens.
3-O escrito de fls. 60, datado de 9.3.2010, identifica uma venda de 1 equipamento terapêutico (colchão), duas almofadas e uma cadeira de vibromassagem, pelo preço de €3. 80,00, a crédito, através da C…, em 60 prestações, cada uma no valor de €83,04, com inicio em Abril e periodicidade mensal.
4-A aposição de impressão digital do Autor encontra-se inserida após o texto das cláusulas contratuais gerais, no verso do documento.
5-O Autor apôs igualmente a sua impressão digital no escrito de fls.. 35/36 (62 e 63), em 15 e 16.3.2010 - mediante o qual solicitou à Ré C… o crédito de €3.663,20, para pagamento do aparelho ortomagnético solteiro, vendido pela Ré O…, a pagar em prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor cada de €83,04, durante 60 meses, a uma taxa nominal fixa de 12,342 e TAEG de 14,8, com montante total imputado ao consumidor de €4.982,S6 e mediante débito em conta do Autor.
6- Autor entregou os documentos de fls. 72 a 76, referentes ao valor da sua pensão (€246,36 + €170,58 =€416,94), extracto da sua conta bancária – fls. 73 - fotocópia, frente e verso, do seu bilhete de identidade – fls. 74 - onde consta, não sabe assinar, fotocópia do cartão de contribuinte - frente - fotocópia de uma factura da PT Comunicações, SA, referente à morada do Autor, sita no Ramalhal- fls. 76.
7-Ao Autor foram explicadas o teor sumário das cláusulas e obrigações do contrato de crédito, designadamente o valor de cada prestação mensal.
8. As assinaturas do contrato de crédito, da autorização de débito em conta, de livrança a favor da C.. e da adesão a seguro de protecção a crédito a particulares, foram efectuadas a rogo do Autor, por parte de Vanda … e reconhecidas por Advogado, Carlos… - cf. Fls. 37/39 (64 a 71).
9. Porquanto o Autor não sabia ler, nem escrever.
10. O Autor pagou vinte e cinco (25) das sessenta (60) prestações previstas, por débito directo na sua conta bancária, no valor cada, de €83,04.
11. Tendo a último sido paga em 25 de Maio de 2012.
12. O colchão e a cadeira de massagens foram entregues ao Autor em 20.3.2010, tendo o colchão as medidas de 1,85m por 0,90cms, medidas tiradas sobre a cama do Autor.
13.0 Autor auferia uma pensão no valor mensal de €416,36 - facto adquirido por aquisição processual – fls. 72 - constando tal valor do contrato de fls. 32 - contrato de crédito.
14. Em 20.8.2010 o A. recebeu a carta de fls. 17, enviada pela Ré C…, alertando para o não pagamento, da quantia de €103,04, valor de uma prestação, acrescido de quantia por incumprimento.
15. O Autor deixou de pagar as subsequentes prestações, porquanto procedeu ao cancelamento da ordem de pagamento por débito directo na sua conta bancária.
A final foi proferida esta decisão:
“Pelo supra exposto, decide-se julgar a presente acção improcedente, porque não provada, absolvendo, em consequência, as Rés do pedido.
É esta decisão que o A impugna, formulando estas conclusões:
1-o Recorrente intentou acção de condenação, com processo sumário contra a O…Ld.ª, com sede em … e Banco C…, com sede em…, pedindo em suma que o Tribunal declare "a nulidade de contrato de compra e venda, por violação do disposto no contrato de compra e venda por violação do art.º 16°, n", 1, do DL n", 143/2001, de 26.04, ou a anulabilidade do contrato de compra e venda por violação do disposto na aI. i.) do art.º 8° e nº, 1 e al. b) do n°. 4, do art.º 9° do Regime das Vendas Agressivas e a nulidade do contrato de crédito celebrado com a 2° Ré, por violação do disposto no 6°,7° e 12° do DL n°. 133/2009, bem como, condenar-se a 2a Ré a restituir o valor das prestações já debitadas na conta do Autor acrescidas de juros à taxa legal, valor a liquidar em execução de sentença" .
2-Em relação à declaração de nulidade do contrato de compra e venda, diz o Mmo. Tribunal “a quo” que não se provou efectivamente a entrega de duplicado do contrato ao Autor, e bem assim do contrato de compra e venda, entregas que efectivamente as Rés não lograram provar, como era seu ónus legalmente previsto.
3-Diz o art.º 573° do Código Civil que a "obrigação de informação existe, sempre que o titular do direito fundada acerca da existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias", sendo certo que, a lei estabelece em preceitos especiais a obrigação de prestar informações.
4- Constituindo causa de nulidade do contrato a não-entrega da cópia do contrato bem como da documentação complementar com as cláusulas gerais e especiais.
5- Nulidade que, no nosso entender, deveria ter sido declarada, por estarem preenchidos os requisitos para tal, conforme supra alegado.
6- Salvo o devido respeito ao tribunal a quo, salvo melhor entendimento violou o disposto nos artigos 573° e 286° do Código Civil bem como o art.º. 26°, n°.1 do DL n°. 133/2009, de 2 de Junho, no sentido em que a invocação da nulidade de um negócio jurídico pode ser feita a todo o tempo e in casu quando o dever de informação do consumidor é violado quer pela não redução a escrito do contrato quer pela não entrega de cópias das cláusulas contratuais, quer gerais, quer especiais.
7- Além do mais a matéria de facto dada como não provada constam factos sobre os quais se produziu prova em sede de audiência de julgamento, nomeadamente através do depoimento da testemunha Marília, o qual pela sua extensão nos abstemos de reproduzir mas cujos pontos relevantes para determinação de decisão diversa foram acima elencados:
8- Nomeadamente, que o Recorrente não ficou ciente do preço da compra;
9- Que o Recorrente não ficou com quaisquer comprovativos ou duplicados da compra e do não respectivo contrato de crédito;
10- Que o Recorrente não sabe ler nem escrever;
11- Que o Recorrente têm dificuldades de raciocínio;
12- Que o Recorrente não sabe a quantos escudos corresponde um euro;
13- Que as contas do Recorrente são geridas com a ajuda dos familiares;
14- Pontos que no nosso entender foram incorrectamente valorados e julgados, optando-se pela absolvição das Rés, dada o quantitativo de testemunhas por estas produzidas;
15- Ora todos estes factos, reproduzidos no testemunho acima indicado, imporiam decisão diversa ao Douto Tribunal a quo;
16.Isto é, as Rés deveriam ter sido condenadas a devolver as quantias prestadas por violação do dever de informação, de entrega das cópias dos contratos bem como do aproveitamento da fragilidade do consumidor, ora Recorrente.
17- Assim, deverá a Douta sentença do Tribunal a quo ser revogada e substituída por diversa, no sentido da declaração da nulidade do contrato de compra e venda e contrato de crédito, os quais foram supostamente celebrados entre as 1 as e 2as Rés, ora Recorridos.
Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais (exceptuando questões de conhecimento oficioso não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso, nos termos do disposto nos art.º/s 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil actualmente em vigor e aqui aplicável (doravante NCPC.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06 –, constata-se que o objecto do recurso prende-se com a alteração da decisão sobre a matéria de facto e análise da nulidade dos contratos outorgados.
A)--Alteração da decisão sobre a matéria de facto:
O A entende que “Além do mais a matéria de facto dada como não provada constam factos sobre os quais se produziu prova em sede de audiência de julgamento, nomeadamente através do depoimento da testemunha Marília, o qual pela sua extensão nos abstemos de reproduzir mas cujos os pontos relevantes para determinação de decisão diversa foram acima elencados:
--nomeadamente, que o Recorrente não ficou ciente do preço da compra;
--Que o Recorrente não ficou com quaisquer comprovativos ou duplicados da compra e do não respectivo contrato de crédito;
--que o Recorrente não sabe ler nem escrever;
--que o Recorrente têm dificuldades de raciocínio;
--Que o Recorrente não sabe a quantos escudos corresponde um euro;
--Que as contas do Recorrente são geridas com a ajuda dos familiares;
Na 1ª instância ou na Relação, a questão é sempre de valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação.
Em ambos os casos vigoram para os julgadores de ambos os Tribunais as mesma regras e princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (por contraposição ao regime da prova legal), consagrado no art. 655º-1.
Quer isto dizer que a prova será sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções reflectidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação.
Por isso, a prova, deve ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (art.º 515º CPC).
Finalmente, no âmbito dessa valoração das provas no seu conjunto, poderão os julgadores lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais – art.º 351º C. Civil.
Numa palavra, a Relação deverá formar e fazer reflectir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.
Auscultado o depoimento das testemunhas...
O depoimento da testemunha Marília, sobrinha do A, é fulcral quanto ao conhecimento das capacidades cognitivas /intelectuais para a compreensão do acto que realizou. A testemunha é a pessoa que com ele interage num contexto familiar /social. Por isso, pode dar-nos conta da compreensão do A. acerca dos reais contornos do acto realizado e valoração das consequências do mesmo; especialmente, a capacidade de endividamento por via do crédito ao consumo, prevendo factores tais como custos com necessidade acrescida de maiores cuidados médicos e medicamentosos.
E a este respeito, a testemunha refere que:
“Quando viu o colchão e a cadeira de massagens na casa do tio, indagou-o acerca da proveniência destes materiais, mas este não soube explicar. Foi à procura de documentação e apenas encontrou uma pasta com manuais de instruções e um cartão do vendedor, de nome Agostinho. Contactou este último, mas este poucas explicações lhe deu, a não ser que foi ao lar e o tio comprou. Posteriormente, contactou alguém do departamento jurídico da 1ª R.
Com esta tramitação decorreu bastante tempo.
O tio sabia que ia pagar o que comprou em prestações, mas não teve noção do valor das prestações, segundo a sua opinião.
O tio sempre foi dependente da sua mãe, pois tem dificuldades de raciocínio e locomoção. Não sabe ler, nem escrever, ainda que em adulto tivesse frequentado a escola.
O tio consegue fazer compras que adaptadas ao seu ritmo de vida, ou seja, as regulares, fixas, onde não tem quaisquer exigências, como por exemplo na farmácia.
O tio não sabe fazer a conversão dos euros em escudos, ainda fala em escudos.
Para tentar resolver a situação, fez-se sócia da Deco.”
Claro que esta testemunha não esteve presente na reunião efectuada pela 1ª R no Centro de dia, pelo que não nos pode “contrariar “o que referiu a testemunha Carlos.., quanto ao ocorrido na dita reunião.
Assim”...a testemunha, enquanto advogado estagiário fez o reconhecimento das assinaturas dos documentos contratuais.
Tem uma vaga ideia do caso, ainda que se lembre que o A. não sabia ler, nem escrever.
Afirma que explicou ao A. os termos do contrato de forma genérica ,”o essencial”, pois o A. também conhecia os contratos. Verificou que o A. conhecia os contratos; foi-lhe lido o conteúdo do negócio.
Sabe que os comerciais entregavam aos clientes os documentos precisos, mas como não tinha esta função, em concreto, não sabe o que foi entregue ao A; também não preencheu o contrato.
O A. não achou alta a prestação, não tinha problema em pagar a prestação...
Executou estas tarefas durante três meses”
As demais testemunhas não estiveram presentes na reunião da venda, nem assistiram à contratualização. A testemunha Dália foi responsável pelo apoio ao cliente ao serviço da 1ª R.,no período de 2009 a 2011 e a testemunha Evaristo trabalha para a 2ª R. desde 2005.
Por isso, no exercício das suas funções dão-nos conta da existência de uma carta do A., datada de 30-06-2011,a solicitar a revogação do contrato e que todo o processo burocrático correu normalmente.
A testemunha Dália descreve todos os passos do procedimento: o 1º contacto na demonstração; remessa da documentação precisa por parte do cliente; tirar as medidas do equipamento ajustadas a cada cliente; formalização do contrato, após anuência da 2ª RÉ entrega do material.
Esta testemunha refere ainda que a documentação, analisada e tratada é enviada para casa do cliente.
A testemunha Evaristo adianta que os motivos invocados pelo A. para resolução do contrato eram as dificuldades financeiras.
Interagindo estes depoimentos com a prova documental, o que concluir?
É um facto que a prova acerca das capacidades cognitivas do A. mereceria outro tipo de comprovação, por via de algum relatório médico, ou até mesmo de outras testemunhas que com ele convivessem à data da outorga do contrato.
A testemunha Marília prestou um depoimento sereno, fazendo transparecer dúvidas acerca de certos factos, o que nos leva a crer que foi credível; porém, e como já referimos, o seu depoimento necessitaria do acompanhamento de outros elementos.
Contudo, esta omissão não prejudica a prova de que o A., numa visão abrangente, era uma pessoa com determinadas deficiências de aprendizagem e apreensão de factos: o A. não sabe ler nem escrever, o A. não sabe fazer a conversão entre escudo e euro, o A gere o seu quotidiano em função de rotinas (as compras que não exigem esforços acrescidos).
Na verdade, conjugando o depoimento da testemunha Marília com as regras da experiência de vida, enquanto conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, é sabido que uma pessoa com as características do A. tem menos capacidade de entendimento do quotidiano, ou seja, da percepção dos factos que ocorrem no seu dia –a dia, nomeadamente daqueles que descrevemos anteriormente.
Por outro lado, o depoimento das demais testemunhas não pode deixar de estar enquadrado na actuação devida a profissionais como eles o eram, ou seja, ainda que as testemunhas “digam a verdade”, certo é que a sua percepção tem subjacente a “visão” da empresa. Esta conclusão não significa que as testemunhas não depuseram com a verdade dos factos , mas certo é que a sua “ verdade” está formatada pela gestão da empresa a que pertencem.
Por isso, não decidimos alterar a matéria de facto provada[1], mas acrescentar outros para a compreensão do objecto do litígio e que resultaram, inequivocamente do depoimento da testemunha Marília, a saber:
--ponto 9º-A “ O A. não sabia efectuar a conversão de escudos em euros “.
--o ponto 9º-B ”No seu dia-a–dia o A. apenas conhece o escudo como moeda”.
Para além deste pontos, há que acrescentar uma outra factualidade que resulta da documentação, fls.18 e 19, e que é relevante para a decisão do objecto do litígio, tal como adiante se irá explicar.
Ponto 16º—“ em 30-12-2010 foi deferido ao A. “ dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, nomeação e pagamento de compensação de patrono
Ponto 17º-“Em 30-12-2010 a AO nomeia a Sr.ª Dr.ª TB. efeitos de instaurar a acção.
B)Violação do dever de informação, por banda das RR:
Não está em causa que “...Perante a delimitação da causa de pedir e pedido, temos que o caso dos autos assenta deste modo na análise de alegada celebração de um contrato de compra e venda de um colchão - aparelho ortopédico magnetizado - e, associado a este, de um contrato de crédito ao consumo, para aquisição deste bem, pressupondo a particular circunstância da existência de dois contratos interligados (conexos) entre si: um contrato de crédito que apenas nasce para o surgimento de um outro contrato, neste caso, de compra e venda de um bem, de um colchão ortopédico magnetizado...”
A evolução das novas tecnologias e de novas formas de comercialização, ou fornecimento de bens, cada vez mais agressivas num mercado global levou a que os Estados europeus tivessem a preocupação de impor a uma absoluta clarificação dessas novas relações jurídicas, impondo especiais limitações aos princípios da liberdade contratual com vista à protecção do consumidor, procurando impor formas de controlo quer do conteúdo quer da forma da negociação, as quais visam, por um lado, assegurar um maior esclarecimento e ponderação por parte dos consumidores facilmente aliciáveis e ludibriáveis pelas modernas técnicas comerciais, por outro lado, evitar eventuais abusos de poder económico por parte das empresas profissionais, bem como, possíveis situações de exploração da fraqueza económica e/ou intelectual dos consumidores.
Daí que, por um lado, no plano do conteúdo contratual, visou-se assegurar um equilíbrio equitativo entre as prestações negociais a que as partes se obrigam; por outro lado, no plano da forma, visou-se assegurar a máxima informação e reflexão por parte do consumidor por forma a proporcionar a possibilidade de uma decisão contratual ponderada e esclarecida.
Consequência destas preocupações são os DLs nº/s 24/2014, de 14.2, com a alteração da Lei 47/2014, de 28.7, o qual transpõe para a Ordem Interna a Directiva Comunitária n" 2011/83/UE), Dl nº 133/2009 de 2 /06, que transpõe para a Ordem interna a Directiva comunitária nº 2008/48/CE, Dl nº 57/2008 de 26 de Março, abrangente para a Ordem interna a Directiva comunitária nº2005/29/CE.
O DL n° 143/2001. de 26.4, regime vigente à data dos factos foi revogado pelo Dl nº 24/2014, de 14.2, com a alteração da Lei 47/2014, de 28.7, o qual transpõe para a Ordem Interna a Directiva Comunitária n" 2011/83/UE).
Nos termos do artº 12 nº2 (última parte )do CC é este o diploma a aplicar ,porquanto a lei nova dispôs sobre o conteúdo de um determinado contrato, abstraindo dos factos que lhe deram origem e não excepciona do seu âmbito quaisquer contratos anteriores à sua entrada em vigor.
O art.º3 deste diploma define diversos conceitos abrangidos por este, nomeadamente “contrato celebrado fora do estabelecimento comercial” e “contrato celebrado à distância”.
Ora, atento o ponto 2 e 5 da factualidade apurada o que aqui o que está em causa é um contrato celebrado fora do estabelecimento comercial, a saber :”contrato que é celebrado na presença física simultânea do fornecedor de bens ou do prestador de serviços e do consumidor em local que não haja o estabelecimento comercial daquele, incluindo os casos em que é o consumidor a fazer uma proposta contratual, incluindo os contratos”—artº 3 al g) do citado diploma.
É inquestionável que este tipo de contratos fragiliza a posição do consumidor no sentido de que o seu poder negocial, já por si mais vulnerável do que o do fornecedor/prestador, está ainda mais vulnerável, por aquele não se desenvolver no local onde estão centralizadas todas as valências e informações do estabelecimento comercial.
Por isso, neste diploma-art.º 4- se tenha consagrado um dever de conduta negocial, por parte do fornecedor/prestador; é a informação pré contratual, objectivada e concretizada nas diversas alíneas desse mesmo artigo.
E a mesma preocupação está subjacente ao Dl nº 133/2009 de 2/06 (redacção do DL nº 72-A/2010 de 17-06), nomeadamente no seu artº 6º.
Podemos, pois, concluir que o legislador procurou abranger todos os aspectos e circunstâncias de uma negociação pré-contratual de modo a que as declarações negociais coincidam e se reúnam de forma esclarecida, livre.
Daí que, estas informações pré-contratuais, ou o dever de informação por banda fornecedor/prestador ou entidade credora, necessariamente, tem que ser transmitidas ao consumidor por escrito, nos termos das disposições conjugadas dos artº 4º nº5, artº 9 nº2 do Dl nº 24/2014 de 14-02, art.º 6 nº2, artº 12 nº1 do DL nº 133/2009 de 2 de Junho.
E nos contratos definitivos, obrigatoriamente reduzidos a escrito, tem que constar essa informação pré-contratual (artº 9 nº1 do DL nº 24/2014 e artº 12 nº3 do DL nº 133/2009).
Ora, não obstante a redução a escrito dos contratos em causa, como bem se reconhece na decisão impugnada ”... Quanto à não entrega de duplicado do contrato de crédito ao Autor, e bem assim do contrato de compra e venda, entregas que efectivamente as Rés não lograram provar, como era seu ónus...”as RR não lograram provar o fornecimento ao A da informação escrita, tanto a nível da informação pré-contratual, como dos duplicados dos contratos escritos; incumprindo o ónus a que estava obrigada (artº 6 nº11 do DL nº 133/2008 e artº 4 nº 7 do Dl nº 24/2014.
Que consequências retirar desta omissão?
No que respeita ao contrato de crédito o disposto no artº 13 nº1 DL nº 133/2008 é claro: o contrato é nulo.
Em relação ao contrato celebrado fora do estabelecimento comercial existe a menção à obrigatoriedade de redução a escrito, e à entrega da cópia do contrato ao consumidor. Mas, só se menciona a nulidade em relação à omissão da redução a escrito (artº 9 do DL nº 24/2014).
Será este último contrato nulo?
O artº 4 do Dl nº 133/2008 define o que seja:
o) «Contrato de crédito coligado» considera-se que o contrato de crédito está coligado a um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços específico, se:
i) O crédito concedido servir exclusivamente para financiar o pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens ou de prestação de serviços específicos; e
ii) Ambos os contratos constituírem objectivamente uma unidade económica, designadamente se o crédito ao consumidor for financiado pelo fornecedor ou pelo prestador de serviços ou, no caso de financiamento por terceiro, se o credor recorrer ao fornecedor ou ao prestador de serviços para preparar ou celebrar o contrato de crédito ou se o bem ou o serviço específico estiverem expressamente previstos no contrato de crédito.
É esta a situação configurada nos autos; o contrato de crédito só existe em função do financiamento do pagamento do preço do contrato de fornecimento de bens. Por isso, existindo uma interligação tão estreita entre as funcionalidades dos contratos, a nível financeiro ,estes contratos constituem uma unidade económica.
Por essa razão, nos termos do artº 15 das condições gerais do contrato de crédito firmado com o A (fls 34) este contrato celebrado fora do estabelecimento também é nulo.
Presume-se que a Exmª Srª Juiza entendeu que a não entrega do duplicado dos contratos acarretaria a nulidade dos mesmos[2] .Mas, esta questão é ultrapassada pelo facto de se considerar que o A. actua com abuso de direito:
“.Quanto à não entrega de duplicado do contrato de crédito ao Autor, e bem assim do contrato de compra e venda, entregas que efectivamente as Rés não lograram provar, como era seu ónus. Contudo, somos de entendimento que o Autor ao pretender agora a nulidade do contrato celebrado, depois do seu comportamento positivo de cumprimento contratual - ao longo de 25 meses - e tendo retirado ao longo de tanto tempo as respectivas vantagens (com a utilização do colchão, poltrona e almofadas) a sua conduta é contraditória, porquanto, os sinais manifestados, evidentes, reiterados e permanentes de que o contrato seria cumprido. De atentar que não obstante o envio de carta a pedir a resolução do contrato decorrido mais de 12 meses sobre o início de vigência do contrato, não contradizem estas conclusões, sendo certo ainda que o Autor, após a resposta negativa, por há muito se encontrar ultrapassado o prazo, reiterou por mais 12 meses o cumprimento do contrato.
Atento o circunstancialismo supra descrito, a pretensão do Autor, no que tange à nulidade do contrato infundado...”
O actual Código Civil delimitou o conceito de abuso de direito no art.º 334.º dispondo que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Esta figura ocorre quando o direito, embora legítimo, é exercido de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, longe do interesse social e por forma a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico-social desse mesmo direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.
Tal como se depreende do seu teor, aquele normativo acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito ou com «animus nocendi» do direito da contraparte, bastando que tais limites sejam e se mostrem ostensiva e objectivamente excedidos[3] .
A boa-fé tem a ver com o enunciado de um princípio que parte das exigências fundamentais da ética jurídica que se exprimem na virtude de manter a palavra e na confiança de cada uma das partes para que procedam honesta e lealmente segundo uma consciência socialmente aceite.
Mas para que a confiança seja digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo, tem de se verificar o investimento de confiança, a irreversibilidade desse investimento e tem de haver boa fé da parte que confiou, isto é, é necessário que desconheça uma eventual divergência entre a intenção aparente do responsável pela confiança e a sua intenção real, que aquele tenha agido com o cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.
Aquele excesso deve ser manifesto, claro, patente, indiscutível, embora sem ser necessário que tenha havido a consciência de se excederem tais limites.
Uma das modalidades de abuso de direito é, como se sabe, o “venire contra factum proprium”, a qual se manifesta pela violação do princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou. Esta conduta contraditória cabe no âmbito da fórmula “manifesto excesso” e inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
Porém, o abuso do direito, enquanto “válvula de escape”, só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações chocantes do Direito[4]
Como escreveu Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, ali citado:
“O venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.”
E ensina, o mesmo Professor, na “Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 58, Julho 1998, pág. 964, são quatro os pressupostos da protecção da confiança, ao abrigo da figura do “venire contra factum proprium”:
“ (...) 1.° Uma situação de confiança, traduzida na boa-fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);
2.° Uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;
3.° Um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
4.° Uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível.”
A proibição do venire contra factum proprium “ancora na ideia de protecção da confiança e da exigência de correcta actuação que não traia as expectativas alimentadas por um modus agendi que não conhece desvios e surpresas que frustrem o investimento na confiança; que a actuação do contraente se pautará sempre por regras éticas de decência e respeito pelos direitos da contraparte.
Havendo violação objectiva desse modelo de actuação honrado, leal e diligente pode haver abuso do direito, devendo ser paralisados os efeitos que, a coberto da invocação da norma que confere o direito exercido ou exercendo, se pretendem actuar mas que, objectivamente, evidenciam um aproveitamento não materialmente fundado, para fins que a ética negocial reprova, porque incompatíveis com as regras da boa fé e do fim económico ou social do direito, colidindo com o sentido de justiça que a comunidade adopta como sendo o seu padrão cultural” .
Perante este quadro conceptual como encarar a atitude do A.?
Afigura-se-nos de forma muito clara que o A. não actuou à luz do abuso de direito, atento o seguinte:
Em 2/03/2010 o A. outorga os contratos, mas não lhe é dada qualquer duplicado dos mesmos.
O A. não sabe ler nem escrever, bem como também não sabe efectuar a conversão do escudo em euros, estando convencido que a moeda corrente é o escudo.
Por isso, como pode ele saber que pode pagar os € 83,04 de prestação?
Pode afirmar que paga, mas não tem noção do que diz.
Por outro lado, a 1ª R explica-lhe de forma sumária o teor das condições e cláusulas do contrato de crédito.
E quanto ao contrato celebrado fora do estabelecimento?
Nada se apura.
Mas, ainda que se considere a referida explicação “sumária”, o que significa isto no âmbito de uma série de advertências explanadas nos diplomas analisados, como deveres pré-contratuais?
Não pode significar “nada”, pois essa síntese, enquanto conceito conclusivo, no universo destes últimos deveres perde total significado; desconhecemos os termos da síntese.
Acresce que por virtude da falta de entrega dos duplicados, o A. não tem a possibilidade de explicar a familiares os termos exactos do que comprou. O que é ainda mais relevante se não nos esquecermos que o A. não sabe ler, nem escrever.
Assim, já se compreendem as declarações da testemunha Marília quando refere que andou à procura de documentação da compra, assim que se apercebeu de que os bens fornecidos pela 1ª R. tinham sido entregues ,já que o A. nada sabia dizer...
Finalmente, em 30-12-2010 foi proferido despacho a deferir a nomeação de patrono para esta acção. O que quer dizer que antes dessa data o A tinha a intenção de instaurar esta acção ,ou seja ,desconhece-se a data em que o A requereu protecção jurídica ,mas seguramente foi no mesmo ano da contratualização (9-03-2010).
O facto da acção só ter sido instaurada em 31-12-2012 é circunstância a que não poderemos atender, pois já envolverá a actuação da ilustre mandatária, sendo que o facto essencial é a intenção do A. em quebrar laços contratuais ,dos quais nem tinha cópia ,mas apenas uma “síntese” oral de um dos contratos.
Em Junho de 2011 o A. envia à 1ª R. uma carta em que pretende desvincular-se do compromisso .
Perante este entrecruzar de factos, não podemos deixar de concluir que inexiste qualquer violação do princípio da confiança; as RR ao terem actuado como actuaram não poderiam deixar de esperar que o A. se quisesse desvincular, ou seja, não poderiam ter um crédito de confiança, quando sabiam que infringiram a lei.
Por outro lado, o A. nesse mesmo ano de 2010 quis desvincular-se. O facto de tal não ter ocorrido e dos equipamentos terem estado na sua posse é circunstância que não pode ser valorada neste âmbito, já que tal não foi da vontade daquele.
Termos em que não há lugar ao abuso de direito, pelo que os contratos são nulos e com os efeitos previstos nos artº/s 289 nº1 e 805 nº1, ambos do CC.
Face à nulidade dos contratos fica prejudicada a análise das demais conclusões.
Conclusão: o facto de não ter sido entregue ao A. duplicado dos contratos assinados leva à nulidade dos mesmos, nos termos do disposto no artº 13 nº1 Dl nº 133/2008.
Em relação ao contrato celebrado fora do estabelecimento comercial existe a menção à obrigatoriedade de redução a escrito, e à entrega da cópia do contrato ao consumidor. Mas, só se menciona a nulidade em relação à omissão da redução a escrito (art.º 9 do DL nº 24/2014.
Porém, nos termos do artº 15 das condições gerais do contrato de crédito firmado com o A. (fls 34) este contrato também é nulo.
Pelo exposto, na sequência da procedência da apelação acordam em julgar nulos os contratos fora do estabelecimento comercial e de concessão de crédito outorgados com o A. a 9-03-2010, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, com juros a contar da citação.
Custas pelas RR.
Lisboa, 4/06/2015
Teresa Prazeres Pais
Isoleta de Almeida e Costa
Carla Mendes
[1] O facto do A não saber ler ,nem escrever já está consignado
[2] Se relermos a decisão impugnada, fls 182,esta questão não é abordada de forma objectiva e concisa. A análise do abuso de direito sobrepõe-se.
[3] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 296, e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, pág. 536.]
[4] Cfr. acórdão do STJ de 15/1/2013, no processo n.º 600/06.5TCGMR.G1.S1, in www.dgsi.pt.