Supremo Tribunal de Justiça
04.03.2004
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
Em 21/1/97, A moveu contra a B, a C, e a D, acção declarativa com processo comum na forma ordinária que foi distribuída à 2ª Secção do 16º Juízo Cível da comarca de Lisboa.
Arguiu, em suma, a nulidade de dois contratos-promessa ditos de constituição de direito real de habitação periódica celebrados com as duas primeiras em 14/3/90, por falta do reconhecimento presencial da assinatura do representante das promitentes-vendedoras,
Pediu, com referência aos arts. 220º, 227º, 289º, nº1º, 410º, 562º e 564º C.Civ. e 11º, nº4º, do DL 130/89, de 18/4, então vigente (1): - a condenação das duas primeiras demandadas a restituir-lhe a quantia de 2.152.468$00, paga como parte do preço daqueles contratos; - autorização para levantar a importância de 1.061.496$00 depositada no âmbito de acção de consignação em depósito intentada contra as mesmas; - a condenação dessas Rés a pagar-lhe a quantia de 1.675.906$00 a título de indemnização pela violação das regras da boa fé na formação do contrato; - e nos juros moratórios legais desde a citação até pagamento.
Tinha alegado ter a 3ª Ré assumido a responsabilidade da 1ª, tornando-se assim devedora solidária das dívidas desta.
Contestada a acção, com, nomeadamente, referência à não exigência da formalidade aludida pelo diploma por último referido, houve réplica, em que se requereu a condenação das contestantes como litigantes de má fé.
Em audiência preliminar, foi proferido saneador tabelar, indicada a matéria de facto assente, e fixada a base instrutória (aditada na audiência de discussão e julgamento - fls.223).
Instruída a causa, veio, após julgamento, a ser proferida, em 21/12/2001, sentença que, julgando nulos os contratos-promessa em referência e, nessa conformidade, parcialmente procedente e provada a acção, condenou as Rés a restituir ao A. a quantia de 2.152.468$00, paga como parte do preço daqueles contratos, e autorizou o mesmo a proceder ao levantamento da importância de 1.061.496$00 depositada na Caixa Geral de Depósitos no âmbito de acção de consignação em depósito intentada contra as 1ª e 2ª Rés.
Apelaram ambas as partes dessa sentença; mas o A. deixou deserto este seu recurso, por falta de alegação.
A Relação de Lisboa julgou procedente a apelação das Rés e revogou a sentença recorrida na parte impugnada, absolvendo-as dos pedidos relativamente aos quais o A. tinha alcançado ganho de causa.
Pede, agora, o A. revista dessa decisão, deduzindo, em fecho da alegação respectiva, estas conclusões:
1ª - Os contratos-promessa em causa são nulos por falta de requisito essencial à sua validade, que é o reconhecimento presencial das assinaturas das promitentes-vendedoras, conforme art.410º, nº3º, C.Civ.
2ª - A 3ª Ré é, desde Março de 1994, solidariamente responsável pelas obrigações da 1ª Ré.
3ª e 4ª - O argumento de que não faria sentido exigir para o contrato-promessa uma forma mais solene - o reconhecimento presencial - que a imposta para o contrato definitivo não pode ser acolhido, uma vez que, conforme art.4º, nº1º, do DL 130/89, de 18/4, a constituição do direito de habitação periódica era feita por escritura pública, forma essa muito mais solene que o reconhecimento presencial.
5ª - É este o núcleo de razões - no fundo uma só - gerador da inconformação do recorrente.
6ª - Foi, na verdade, violado o nº3º do art.410º C.Civ., na redacção de 1986, aplicável ao caso.
Não houve contra-alegação e, corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Há, de facto, a fls.7 - III -1. do acórdão recorrido (a fls.344 dos autos - v. III -1.), óbvio lapso de escrita, prevenido, por forma geral, nos arts.249º e 295º C.Civ., e de modo particular nos arts. 666º, nº2 (2), e 667º CPC, que mais não haverá que rectificar: onde ali se lê 2.675.906$00 deverá ler-se 1.675.906$00.
Em princípio delimitado o âmbito ou objecto deste recurso pelas conclusões da alegação do recorrente ( arts.684º, nºs 2º a 4º, e 690º, nºs 1º e 3º, CPC), a questão a dirimir neste recurso vem, em todo o caso, a ser apenas esta:
Não referido esse requisito de validade no DL 130/89, de 18/4, as assinaturas dos promitentes nos contratos-promessa respeitantes ao direito real de habitação periódica têm, ou não, de ser objecto do reconhecimento presencial imposto pelo nº3º do art.410º C.Civ.?
A matéria de facto a ter em atenção é a fixada pelas instâncias, para que, em cumprimento do disposto nos arts.713º, nº6º, e 726º CPC, ora se remete.
O direito real de habitação periódica, com frequência dito time-sharing, foi instituído pelo DL 355/81, de 31/12, no preâmbulo do qual se refere que - na prática equivale a um regime de propriedade fraccionada, não já por segmentos horizontais, mas por quotas partes temporais -, que garante melhor os investidores que os antes correntes títulos de férias, com, apenas, - protecção legal precária de tipo obrigacionista -.
Revogado aquele diploma pelo art.47º do DL 130/89, de 18/4, consta, por sua vez, do preâmbulo deste último, em vigor aquando da celebração dos contratos aludidos, que, através desse direito, se teve em vista, a um tempo, permitir o acesso seguro a uma habitação para férias, por curtos períodos, através da constituição de um direito com eficácia real (em que, pois, concorre, direito de sequela - ubi rei mea invenio, ibi vindico), e a outro, a conatural função, dita - vocação (desse direito) de elemento dinamizador dos equipamentos destinados ao alojamento turístico, que foi, no fundo, a determinante da sua génese - (destaque e sublinhado nossos) (3).
Na consideração do regime jurídico dum tal direito, nomeadamente no que respeita ao rigor exigido pelos direitos de carácter real, terá, por certo, de atender-se também a esta segunda vertente.
Trata-se, por outro lado, de - um direito real de feição muito particular, que participa de elementos doutros direitos reais de gozo, nomeadamente, o usufruto, e, em particular, a propriedade horizontal -.
A faculdade essencial do titular deste direito, caracterizadora do instituto, é a de habitar a unidade de alojamento durante o período de tempo anual estabelecido (4).
Isto adiantado, importa, em bom rigor, distinguir dois planos: o da constituição do direito real de habitação periódica, ou seja, o da instituição do regime de exploração de um empreendimento turístico mediante a constituição de direitos reais - desse tipo, e o da subsequente transmissão (ou oneração) desses direitos parcelares de habitação periódica (5). Com efeito:
O direito de habitação periódica em causa é um direito real limitado, hoc sensu, menor, de gozo sobre coisa alheia (6), constituído por negócio jurídico unilateral sujeito a escritura pública e oponível a terceiros por efeito do registo desse título constitutivo.
Só depois pode o titular dispor das unidades de alojamento, integradas em empreendimento turístico (de que há vários tipos ou espécies), referidas no título constitutivo.
Já só para tanto exigido título (documento) particular, este último está igualmente sujeito a inscrição registral (7).
Definível o direito de habitação periódica como um direito real de utilização de edifício ou sua fracção integrados em empreendimento turístico por um curto e definido período de tempo em cada ano - cfr. art.1º do DL 130/89, de 18/4, não passará despercebida a parecença, semelhança ou, hoc sensu, analogia, da escritura referida no art.4º, nº1º, desse diploma legal com o título constitutivo da propriedade horizontal regulado no art.1418º C.Civ. ( sendo ao registo desse título que se refere o art.7º daquele DL ).
O preceito regulamentador da forma da transmissão do direito real de habitação periódica é, de facto, não aquele art.4º, mas sim o nº4º do seguinte art.11º, que, em vista do registo prescrito no seu nº2º, exige o reconhecimento presencial da assinatura do vendedor nesse documento (particular).
Improcede, pois, a crítica dirigida ao acórdão sob revista nas conclusões 3ª e 4ª da alegação do recorrente (8).
Está-se, na realidade também, perante direito regulado em lei própria, com função situada no domínio das férias, vilegiatura e turismo, e de que, no que respeita ao contrato-promessa, regulado nos arts.30º a 32º dessa lei - normas jurídicas especiais -, não consta aquela exigência.
Exceptuadas do princípio da equiparação estabelecido no nº1º do art.410º C.Civ. as normas relativas à forma, valia, na hipótese, nesse domínio, a regra geral estabelecida no nº2º desse artigo.
Tal assim caso se não se mostrasse aplicável o seu nº3º, e, deste modo, o requisito especial - reconhecimento presencial da assinatura de ambos os promitentes - aí referido. Ora:
Na falta de justificação bastante, a exigência do reconhecimento, em contrato-promessa celebrado nessa área, âmbito ou domínio, da assinatura de ambos os promitentes briga, desde logo, com a do reconhecimento, apenas, da assinatura do vendedor, no que se refere ao contrato definitivo.
Salta, de facto, à vista não fazer sentido a exigência do reconhecimento, no contrato-promessa, da assinatura de ambos os promitentes onde, para o contrato definitivo, se exige, apenas, o da assinatura do vendedor.
Não desconhecendo o legislador de 1989, ao regular o direito de habitação periódica, a alteração introduzida no nº3º do art.410º C.Civ. pelo DL 379/86, de 11/11, e flagrante que era a sobredita discrepância, não teria, por certo, deixado de a ter esclarecido, a considerar ser disso caso.
A imposição do reconhecimento da assinatura dos promitentes - ambos - e da certificação da existência de licença de utilização ou de construção estabelecida no nº3º do art.410º C. Civ., introduzida pelo DL 236/80, de 18/7, teve por finalidade, como elucidado no prêambulo desse diploma legal, conferir maior solenidade ao contrato e impedir que, sem conhecimento do promitente-comprador, pudessem ser objecto de promessa de venda prédios de construção clandestina.
Tinha-se em vista, como notado em ARL de 10/11/94, CJ, XIX, 5º, 98 (2ª col.), o direito à habitação, objecto de protecção constitucional no art.65º CRP, e não o direito ao lazer, a que o direito de habitação periódica propicia satisfação.
A disciplina dos requisitos formais estabelecida na versão actual do predito nº3º do art.410º C. Civ. (redaçção do DL 379/86, de 11/11) tem, para além do mais, por objectivo a defesa do consumidor (9).
A alteração dessa previsão legal foi determinada por um propósito de alargamento do âmbito dos contratos-promessa nela abrangidos, em consequência da identidade da razão das exigências formais suplementares relativamente aos casos antes contemplados (10). Ora:
- As vicissitudes do direito real de habitação periódica assumem algumas particularidades, em grande medida determinadas pela maneira de ser deste direito, a impor maior facilidade de circulação. Daí resultam menos exigências quanto às formalidades dos correspondentes negócios.-
Sendo esta uma área de actividade em que a posição de quem constitui o direito" é, em regra, dominante, facilitando ainda comportamentos enganatórios - que o consumidor nem sempre tem meios de controlar (11), a protecção dos interesses deste é alcançada por outros meios. Como, - assim proporcionada melhor reflexão e consentido arrependimento -, nomeadamente é o caso da faculdade concedida pelo art.30º, nº4, do DL 130/89 e mencionada no acórdão sob revista, de resolver o contrato-promessa por carta registada com A/R nos 7 dias seguintes à assinatura. Por outro lado:
Peculiaridade do direito de habitação periódica só poder incidir sobre edifícios ou respectivas fracções integrados em empreendimentos turísticos - nº 1 do já citado art.1º do DL 130/89, de 18/4, só eram como tal considerados os que tivessem sido classificados pela Direcção Geral do Turismo, a que, conforme Decreto Regulamentar nº14/78, de 12/5, igualmente competia autorizar a sua abertura ou entrada em funcionamento, nos tipos ou espécies referidos no nº2 desse mesmo artigo, nos termos do DL 328/86, de 30/9: logo tal, se bem parece, de algum modo contrariando o risco de promessas de venda de construções clandestinas.
Tendo-se com esse posterior diploma, como dito no preâmbulo respectivo, procurado reforçar a protecção do adquirente consumidor, parte normalmente mais fraca, impondo maiores exigências aos promotores dos empreendimentos turísticos, o art.17º (v. também art.18º) do subsequente DL 275/93, de 5/8, exige apenas a redução a escrito: como, bem que referindo-se ao conteúdo do contrato e não, propriamente, à sua forma, já se depreendia do predito art.30º do DL 130/89.
Trata-se, enfim, em derradeira análise, de questão regulada por lei especial que a alteração da redacção do nº3º do art.410º C.Civ., com objecto diferente, não alcança.
Assim não entendido, impor-se-ia redução teleológica e interpretação restritiva dessa disposição legal.
O acórdão recorrido cobrou apoio em ARL de 24/4/97, CJ, XXII, 2º, 120 ss (v. 122 a 124) (12), de que bem assim agora se colheu proveito.
Concluindo: as assinaturas dos promitentes nos contratos-promessa respeitantes ao direito real de habitação periódica não tinham, na vigência do DL 130/89, de 18/4, de ser objecto do reconhecimento presencial imposto pelo nº3º do art.410º C.Civ.
Nunca tal por aí além fazendo sentido onde, ab initio, conforme parte final do preâmbulo do DL 355/81, de 31/12, expressamente, se teve em vista um direito - facilmente negociável -, que - titulado por um certificado predial, transmissível ou onerável por simples endosso ou averbamento -, adquiria, nessa medida, - as características negociais de um bem mobiliário -.
Alcança-se, pelas razões expostas, esta decisão:
Nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 25 de Março de 2004
Oliveira Barros
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
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(1) Revogou o DL 355/81, de 31/12, alterado pelos DL 358/83, de 4/10 e 130/89, de 18/4, e veio a ser revogado pelo art 62º do DL 275/93, de 5/8, depois por sua vez alterado pelo DL 180/99, de 22/5. Elucidando as razões da inovação introduzida pelo lo primeiro desses diplomas legais, v. Henrique Mesquita, - Uma nova figura real: O direito de habitação periódica -, Revista do Notariado, 1985/2, 181 ss, como, antes, na RDE, VIII, nº1, 39 ss. Reportando-se já ao DL 275/ 93, v. a monografia de Isabel Pereira Mendes, - Direito Real de Habitação Periódica- (1993). Com bem assim interessante referência de direito comparado e distinção de figuras afins, v. Maria Judite Matias,- Do Direito de Habitação Periódica - (1997).
(2) De que decorre claro não poder falar-se de res iudicata a esse respeito.
(3) Que a necessidade da criação desta figura jurídica era sentida pelas empresas imobiliárias do sector do turismo, di-lo Henrique Mesquita no estudo e primeira rev. cits, 181. Sobre os interesses que visa satisfazer, v. mesmo estudo e rev., 182 ss , maxime, 192-7., e parte final do preâmbulo do DL 355/81, de 31/12. Visou-se favorecer - e, como assim, facilitar - o investimento de pequenas poupanças em regiões turísticas, oferecendo para tanto segurança ao investidor, por outro lado liberto dos ónus de administração e gestão corrente inerentes à situação de proprietário. Referindo - razões de política económica que aconselham a incentivação do investimento em empreendimentos turísticos, especial- mente com vista a potenciar a entrada de diviass no País -, idem, 201. Sobre o impacto marcante da indústria da habitação periódica turística na economia portuguesa, v. José Lobo Moutinho e Luís Bernardes, - Estudo sobre o direito real de habitação periódica -, na revista - Direito e Justiça - da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, vol. VIII,Tomo 1, 1994, 296. Relativamente às principais alterações introduzidas pelo DL 130/89, que teve origem na necessidade de enquadrar esse direito no âmbito da actividade turística, v. mesmo estudo e rev., 306. O preâmbulo do subsequente DL 275/93 refere-se ao direito real de habitação periódica como - um instrumento jurídico adequado para a dinamização do mercado de unidades de alojamento para férias por curtos períodos de tempo-.
(4) V. Carvalho Fernandes, - Lições de Direitos Reais -, 2ª ed. ( 1997 ), 441 ss, designadamente, 444 ( nº 260.) e 447.
(5) V. Henrique Mesquita, estudo e rev.cits, 195-196 e 202, e Oliveira Ascensão, cit., 43, último par., ss, Carvalho Fernandes, ob. e ed.cits, 452 (ss), Penha Gonçalves, - Curso de Direitos Reais - ( 1992 ), 411 ss (cap. XII), nomeadamente, 414 ( nº 92.), 415 e nota 622, e 416-II, e ARL de 8/ 2/2001, CJ, XXVI, 1º,117-I e 118-I.
(6) Oliveira Ascensão, - Direitos Reais -, 5ª ed., ( 1993 ), 514-II. Como adiante observa, nos períodos vagos, o titular do empreendimento pode usar de todos os seus direitos.
(7) Como explica Paula Quintas, - Comentários à Legislação Turística -, ed.Elcla, 1998, p.109. Constando de certificado negociável por endosso - meio de oneração ou alienação desse direito -, o direito do investidor transforma-se por essa via num valor de mercado facilmente negociável, que pode circular expeditamente de mão em mão, como se observa no já referido ARL de 8/2/2001, que cita Henrique Mesquita, estudo e rev.cits, 198.
(8) De que não é clara efectiva correspondência no texto dessa alegação - v., a propósito, Ac.STJ de 2/12/88, BMJ 382/ 497-III e 500 (parte final do 2º par.).
(9) Almeida Costa, - Contrato-Promessa - Uma síntese do regime vigente -, 6ª ed. (1999), 35-36.
(10) Ana Prata, - O Contrato-Promessa e o seu Regime Civil - (1995), 537, citando Antunes Varela e Almeida Costa.
(11) Carvalho Fernandes, ob. e ed.cits. 451 ( nº264.).
(12) Refere ainda outros da mesma Relação, não publicados, no mesmo sentido. Venceu igual orientação em ARC de 6/5/97, CJ, XXII, 3º, 13 e 14, em cujo voto de vencido se menciona um outro, não publicado, dessa Relação, em senti do contrário. Em sentido oposto também, v. ARP de 21/10/97, BMJ 470/680 ( 3º)-681.